Cartas de Baires: Da caverna para a televisão

Existe uma “argentinidad”, com uma natureza clara e definida?

Quem sou? Sou sempre o mesmo? Necessito saber quem sou? Sou o que quero ser? Ou sou o que outros necessitam que eu seja?

Estas são algumas perguntas do episódio 9 – sobre Identidade – do programa “Mentira A Verdade – Filosofia a Marteladas”, uma das três excelentes produções sobre filosofia que pode ser vistas atualmente no Canal Encuentro.

Vejam bem, eu disse três! Em se tratando deste tema, é uma façanha. Um exemplo de como a televisão argentina às vezes tem suas frestas, por onde entram temáticas que a lógica comercial jamais aceitaria.

O ciclo “Mentira A Verdade” estreou semana passada sua segunda temporada. Em 2011, foi o primeiro programa argentino a ser premiado na 46 edição do Japan Prize, que reconhece as melhores iniciativas educativas do mundo.

Conduzido pelo filósofo Darío Sztajnszrajber, o programa está destinado a jovens entre 12 e 19 anos. Mas eu, que tenho 43 e vim de uma formação escolar onde a palavra filosofia não existia, me “enganchei”, como dizem aqui. Justamente na telinha de um dos novos Embraer que a Aerolíneas Argentinas comprou do Brasil. Numa viagem e entre as nuvens – ótimo lugar para filosofar.

A partir de situações de ficção, cada episódio vai desgrenhando os diferentes elementos relacionados a um tema específico. E mediante planteios filosóficos, questiona e poe em duvida o que em geral se considera verdade absoluta sobre determinada questão.

“A cultura impõe um caminho como se fosse único e aí entra em campo o papel da filosofia, que é mostrar outras perspectivas. Isso termina gerando uma multiplicidade de perguntas, uma vertigem e, em algum ponto, angústia, porque há uma tendência muito forte do homem de agarrar-se ao seguro. E outra em sentido oposto. O humano tem esta contradição. Assim como necessitamos certezas, também necessitamos explorar”, explica Darío.

Os outros dois programas sobre o mesmo tema são “Filosofia Aqui e Agora”, conduzido por Pablo Feinmann – em quinta temporada (!) – e “Filosofia: um guia para a felicidade”.

Nas duas primeiras temporadas, Feinmann tratou de acercar os telespectadores a pensadores como Descartes, Kant, Heidegger, Marx e Sartre, por exemplo. Depois, analisou as bases do pensamento e argentino e agora parte para o fundamento do pensamento latino-americano.

Já “Filosofia: um guia para a felicidade” aborda temas como a ira segundo Sêneca, o amor na visão de Schopenhauer, a felicidade por Epicuro ou a dificuldade vista por Nietzsche. Todos podem ser vistos e descarregados no site do Canal Encuentro.

Especialmente em uma época em que todos querem respostas rápidas e definitivas, me parece um luxo poder parar, nem que seja meia hora, para reflexionar sobre temas tão abstratos – e complexos – como o perdão, o tempo, o real, o moderno, a amizade, a felicidade, o amor, a morte. E a identidade. 

Texto no Noblat AQUI

Cartas de Baires: A educação proibida

Nem o último de Ricardo Darín, nem o novo Batman. Um dos filmes de maior recorde de público em Buenos Aires nas últimas semanas se chama A Educação Proibida, do diretor argentino Germán Doin.

Em pouco mais de 15 dias,  foram 605 projeções independentes em cerca de 20 países, mais de 2,8 milhões de reproduções na web, 300 mil downloads e 55 mil fãs em Facebook (dados de domingo).

Tudo isso para um documentário de duas horas e meia sobre um tema que geralmente não dá grande bilheteria: a educação.

O diretor tem apenas 24 anos e o projeto foi todo financiado coletivamente por 704 pessoas que colocaram US$ 62.700 para viabilizar as mais de 90 entrevistas com educadores de oito países.

O filme mescla animação, dramatização com voz em off, entrevistas e uma história de ficção para questionar o atual sistema educativo no Ocidente. Criado há mais de 200 anos, mantém até hoje uma estrutura vertical, baseada na competição, divisão de idades, classes obrigatórias, currículos desvinculados da realidade e sistema de prêmios e castigos.

“Longe de responder às necessidades e desejos dos pequenos, a escola hoje é um estacionamento de crianças, onde elas ficam sendo adestradas até o momento de trabalhar. Se algum não se adapta ao sistema, fracassa. O que não se vê é que não é o estudante que fracassa, e sim o sistema que está mal pensado”, resume um dos entrevistados, o investigador chileno Carlos Muñoz.

O documentário também se propõe a discutir outros modelos de ensino – as experiências proibidas – como a logosofia, Montessori, Waldorf, Killpatrick e Paulo Freire, para citar alguns. Todos estão detalhados no site do filme, onde também se pode baixar o documentário ou vê-lo on line: http://www.educacionprohibida.com

O  diretor não defende nenhum método específico, somente pensar a educação retirando o professor e os conteúdos do centro da cena e colocando aí o aluno, com seus desejos e aptidões individuais. Esquecer a idéia de disciplina, autoridade e competência, e a substituir por respeito, liberdade e amor.

Em entrevistas ao jornal Página 12, Germán Doin afirma que tem duas teses para o sucesso do filme, uma pessimista e outra positiva.  A primeira é que se trata de um fenômeno das redes sociais. A segunda, que há uma necessidade urgente de falar sobre educação.

No momento em que o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, instala um 0800 nas escolas públicas para denunciar atividades de cunho político entre os estudantes, não tenho a mínima dúvida sobre qual das duas opções está correta. O tema está na pauta. Por sorte.

Seguem abaixo o trailer e o filme completo:

Texto no Noblat, AQUI. 

Cartas de Baires: Primeira condenação por agrotóxicos na AL

Sofía Gatica recebeu este ano o Goldman Environmental Prize, o Nobel Ambiental

Numa condenação considerada histórica, a justiça da cidade de Córdoba declarou delito penal as pulverizações com agrotóxicos em campos de soja cerca de bairros povoados. E condenou duas das três pessoas que foram levadas aos tribunais.

Trata-se do emblemático caso do bairro Ituzaingó Anexo, onde há 12 anos as famílias denunciam mortes e lesões em conseqüência do uso de agrotóxicos.

Sobre uma população de cinco mil habitantes, entre 2002 e 2009 morreram 272 pessoas, 82 delas de câncer. No mesmo período foram registrados 272 abortos e 23 crianças nasceram com malformações congênitas. Até setembro de 2010 se registram 143 pessoas com câncer.

A pena, em si, foi uma decepção. Os moradores queriam cadeia para os produtores agropecuários Jorge Alberto Gabrielli e Francisco Parra, e para o agente pulverizador Edgardo Jorge Pancello, por usarem o herbicida glifosato e o inseticida organoclorado endosulfan.

Mas a Câmara do Crime de Córdoba impôs três anos de prisão condicional para Parra e Pancello, e absolveu Gabrielli por falta de provas. A sentença indica também que Parra tem que fazer trabalhos comunitários durante quatro anos e não pode usar agroquímicos por oito.  Pancello também deverá fazer serviços comunitários e ficou inabilitado para aplicar produtos agroquímicos durante dez anos.

Mesmo assim a condenação é importante, porque pela primeira vez a atividade de pulverização com agrotóxicos cerca de áreas urbanas foi considerada um delito na Argentina – e na América Latina.

Isso estabelece jurisprudência para todo o continente, onde há milhares de ações contra produtores rurais, e pode chegar a alcançar as multinacionais fabricantes de agrotóxicos.

A luta em Córdoba começou pela determinação de uma das mães do bairro, Sofía Gatica, que em 1997 perdeu um bebe que havia nascido sem os rins. Ela demorou a juntar uma coisa com a outra, até que percebeu um número pouco usual de mulheres com lenços na cabeça e crianças com máscaras a caminhar por Ituzangó.

Sozinha, começou um levantamento, e já naquele ano detectou 97 pessoas com câncer só no seu bairro! Hoje se sabe que a taxa de câncer na região é 30 vezes maior que a média nacional (dados da Organização Panamericana de Saúde) e que das 142 crianças entre dois e seis anos da localidade, 80% possuem tem agrotóxicos no organismo: chumbo, arsênico e PCB (elemento presente em transformadores elétricos), entre outros. Outros dados em http://www.juicioalafumigacion.com.ar/

Os cultivos transgênicos na argentina, sujeitos à pulverização, cobrem 22 milhões de hectares e efetam, direta e indiretamente, a 12 milhões de habitantes.  Mas o tema não é preocupante somente aqui.

Há três anos o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de consumo de agrotóxicos no mundo segundo a Associação Brasileira de Saíde Coletiva (Abrasco). Apenas na safra de 2011 foram usados 835 milhões de litros de herbicidas, fungicidas e inseticidas. O consumo por habitante chega a cinco quilos de agrotóxico por ano.

É de parar para pensar.

 O texto completo no Noblat, AQUI. 

Cartas de Baires: Eletrônicos, pa’bailar

Os tangueiros ortodoxos torcem o nariz. Mas foi o tango eletrônico (também chamado de tango fusion ou neo tango) um dos principais responsáveis pelo renascimento do interesse por esta música em todo o mundo.

Os primeiros a experimentar a mescla de tango com os recursos eletrônicos foram o parisiense Gotan Project e o Bajofondo Tango Club, formado por artistas argentinos e uruguaios. Depois surgiram outros como Narcotango, Tango Crash, San Telmo Lounge, Otros Aires, Ultratango, Yira e Tanghetto.

Em comum, o fato de unirem instrumentos tradicionais do tango, como o bandoneón, com computadores e samplers. As músicas são remixadas ou são produzidas canções inéditas, mas usando fragmentos de clássicos do tango.

Para alguns, o tango eletrônico – e todas as versões deste ritmo que se afastam do tradicional – são “tango para quem não gosta de tango”. Mas há divergências. A polemica não é nova, mas também não sai da pauta.

No Festival Mundial de Tango, que acontece no mês de agosto, em Buenos Aires, a comunicação entre tango de salão e o eletrônico não para de crescer.

Este ano foi realizada pela primeira vez uma “Milongarave”, um espaço criado para experimentar e, de certa forma, transgredir. E para o fim de semana que vem está sendo preparada uma grande Festa Eletrônica, quando orquestras típicas estarão mescladas com hip hop, drum’n and bass e beats eletrotangueiros e show de Otros Aires.

Esta banda, surgida em  Barcelona, se auto-denomina “arqueológico-eletronico”, já que mescla sons do princípio do século XX (como Gardel e D’Arienzo) com batidas contemporâneas. Na mesma linha estão DJ como DJ Inca, alter ego nas pistas do crítico e jornalista de música Gabriel Plaza, idealizador do Electrotango Party.

Na edição em que se lembram os 20 anos da morte do bandoneonista Astor Piazzolla, até hoje considerado por alguns como o “assassino do tango”, é bacana ver o ritmo em renovação. E vivo.

Piazzolla buscou novos ares para esta música já nos anos de 1970, aproximando-a do rock, com o fugaz Octeto Eletrônico, e depois do jazz. Foi odiado por muitos, especialmente por fazer uma música “não dançável”.

Este ano, Daniel “Pipi” Piazzolla, neto do músico e líder do grupo Escalandrum, apresentou uma nova versão da série Quatro Estações Portenhas, criada pelo avo. E se viu muito Piazzolla sendo dançado pelas pistas.

Quem escuta a música, tem um bom abraço e conexão com o parceiro, dança qualquer coisa. E gosta. Quem não gosta, mas tem “buena onda”, sabe que há lugar pra todo mundo na cena tangueira. Não entra na briga e vai dançar em outro lado. O coração do tango é grande. Ainda bem!

Com vocês, o clássico dos clássicos em versão remix!

O texto no Noblat está AQUI. 

Cartas de Baires: as avós cientistas

 A coluna desta semana é dedicada ao pai, com quem não pude estar no último domingo. Como alguns personagens desta história ele também é médico, também é do bem e também é avô .  Só que graças à democracia pode colocar um neto no colo e contar-lhe uma história. Mais um neto, aliás.

Que venha Thomás!

Neto 106: Pablo Javier Gaona Miranda
Foto: Fernando Gens/Télam

Com 106 netos recuperados (o último na semana passada), as Avós da Praça de Maio celebrarão seus 35 anos de trabalho em 22 de outubro próximo – Dia Nacional do Direito à Identidade.

Mas o presente quem ganha é a gente. Micros documentários de três minutos, contando a vida de cada uma das crianças encontradas e uma série chamada “99,99% – La Ciencia de las Abuelas”, que resgata um lado menos conhecido destas senhoras: a busca pelos métodos científicos que permitiram comprovar estas identidades.

Quando as avós começaram a buscar os cerca de 500 bebês roubados dos pais durante a última ditadura militar, ainda na década de 1970, se depararam com um problema. Tinham nada mais que fotos e lembranças.

Mesmo que os encontrassem, não haveria como comprovar suas filiações verdadeiras, tendo em vista que os pais estavam mortos ou desaparecidos.

Então se perguntaram: existe um elemento constitutivo do sangue que só aparece em pessoas pertencentes à mesma família? Foram atrás de geneticistas. Bateram em muitas portas.

Somente no ano de 1982 passaram por 12 países, entre eles França, Alemanha e Inglaterra, até que chegaram Blood Center de Nova Iorque e à Associação Americana para o Avanço da Ciência em Washington.

Graças a eles, um ano depois, encontraram um método que permite chegar a um percentual de 99,9% de probabilidade, mediante análises específicas de sangue. Era criado neste momento o “índice de abuelidad”, que ficou famoso no mundo. É bom lembrar que ainda faltava um tempo para que os segredos dos genes e do DNA viessem à tona como agora.

Em dezembro de 1983, no primeiro dia hábil de democracia, as avós obtiveram uma ordem judicial para analisar o sangue de uma menina, Paula Eva Logares, que elas tinham certeza era filha de desaparecidos. Foi o primeiro caso comprovado. Nunca mais pararam.

Exigiram a exumação de cadáveres, ajudaram a criar a Equipe Argentina de Antropologia Forense, fundaram o Banco Nacional de Dados Genéticos e, principalmente, ajudaram na descoberta do DNA mitocondrial, tema sobre o qual podem dar até aulas!

Não há espaço para detalhes técnicos na coluna, mas está tudo aqui, no livro “Las abuelas y la genética”,que pode ser baixado gratuitamente AQUI.

O trabalho que elas fizeram foi fundamental não somente para a restituição de identidade como para o julgamento dos genocidas. E muito mais para os geneticistas, que admitem publicamente que sem as avós não teriam chegado tão longe.

Texto completo no Noblat. 

AQUI também há boas explicações científicas e um ótimo vídeo.

Em breve os quatro episódios de 99,99% poderão ser baixados AQUI.

Cartas de Baires: Fileteado, a tipografia da cidade

“Primo” dos textos dos caminhões brasileiros

Antigo, popular e marginal como o tango, a técnica pictórica conhecida como  fileteado portenho é uma das melhores traduções de Buenos Aires. Chegou com os imigrantes, foi proibido por razões de segurança, sobreviveu de teimoso e hoje vive uma fase de redescoberta.

Grosso modo, pode-se dizer que o fileteado é um parente sofisticado das decorações das carrocerias dos caminhões brasileiros. Também começou nos carros e com frases cunhadas na sabedoria popular.

Infelizmente há poucos registros oficiais do início desse trabalho. Entre seus pioneiros estão três italianos – Cecilio Pascarella, Vicente Brunetti e Salvador Venturo – que começaram a pintar com cores as laterais as carroças que eram usadas para entregar produtos, no final do século XIX (e que até então eram cinza) e separá-las com uma linha fina de cor mais intensa ou constante, o que chamamos hoje de filete. Depois, passaram para os carros e ônibus.

A partir daí foi-se criando o repertório específico de desenhos que caracterizam o fileteado: flores, folhas, pássaros, fitas com o azul e branco da bandeira Argentina, bolas, dragões e ainda linhas retas e curvas de diferentes espessuras que vão se mesclando com cenas do campo e personagens populares, como a Virgem de Luján e Carlos Gardel.

Na década de 1970, o filete foi proibido por lei porque podia distrair os motoristas. E quase desapareceu. Mas foi justamente esta proibição que levou os filetes para outros suportes.

Diferente do que aconteceu no Brasil, na Argentina a técnica ganhou novos usos. Saiu dos veículos para os cavaletes dos ateliês de arte. Hoje se vê o fileteado por todo o lado, inclusive em roupas e, ultimamente, até na pele. A tatuagem com filete está na super na moda.

A moda agora é a tatoo fileteada!

O Iº Encontro de Fileteadores portenhos, realizado neste final de semana, no bairro de Mataderos, reuniu mais de 200 profissionais e, mesmo ignorado pela imprensa local, mostra que há um movimento para que esta arte não desapareça.

Participaram do evento grandes maestros, com mais de 50 anos de filete, e também jovens de 18 anos, que começam a fazer seus primeiros desenhos. Surpresa: muitos deles saídos da Escola de Belas Artes, que fizeram uma opção por uma técnica decorativa tradicionalmente popular.

Entre os artistas mais reconhecidos nesta técnica estão o polonês León Untroib (morto em 1994). Da geração atual, Martiniano Arce e, mais recentemente, Alfredo Genovese, que está fazendo uma revolução no uso comercial do filete, trabalhando para grandes marcas, como Nike e Coca-Cola.

A tradição gráfica do filete sobrevive e renasce, como fez o tango. Agora falta somente que se revogue o decreto que a proibiu de ser usada nos ônibus, para que volte a adornar com humor e  melancolia a cidade que a inspira.

Texto no Noblat, AQUI. 

Adoro esse!

Cartas de Baires: Santuários de Alta Montanha

Donzela teria em torno de 15 anos

Uma das manifestações mais impressionantes e menos conhecidas do Império Inca são os santuários erigidos no topo das montanhas mais altas da Cordilheira dos Andes. Estes lugares – tão perto do sol, da lua e do céu – eram centros de peregrinação e cenários para a realização de rituais.

Em toda a Cordilheira há cerca de umas 200 montanhas com restos arqueológicos, sendo 40 no território argentino. Mas em pouquíssimas foram descobertos o tesouro que guarda hoje a cidade de Salta: oferendas humanas.

Não há nada similar em outra parte do Planeta. Nem sequer no Himalaia.

A principal descoberta foi feita em 1999 no topo do Cerro Llullaillaco (6.739 metros), o mais alto da região, por uma equipe da National Geographic. Enterrados a um metro e meio de profundidade, debaixo de gelo e pedras, estavam três crianças incas em perfeito estado de conservação.

A montanha é Deus.

Uma pequena de seis anos, conhecida hoje como “A Menina do Raio”, um segundo corpo batizado de “O Menino”, de sete anos, e uma adolescente de 15 anos, “A Donzela”. As múmias podem ser vistas, uma por vez, no Museu de Arqueologia de Alta Montanha de Salta, um espaço que surpreende pelo acervo, tecnologia e respeito ao passado.

Estas crianças, os “Niños de Llullaillaco”, tinham com eles 160 peças que compunham seus respectivos “ajuares”, uma espécie de enxoval com oferendas. Estes objetos também estavam intactos e ajudaram os especialistas a entender como eram os rituais no passado pré-hispanico.

Antes de serem ofertadas às montanhas, crianças de diferentes partes do Império Inca, selecionadas por sua beleza e perfeição física, faziam uma peregrinação até Cusco, onde passavam por uma longa cerimônia, conhecida como “Capacocha”, ou “obrigação real”.

Neste momento, recebiam oferendas de todo o território – conchas marinha da costa do Equador, plumas das selvas orientais, lãs da cordilheira dos Andes. Essas pecas, que também podiam ser de madeira, ouro, prata couros ou fibras vegetais – eram levadas com eles de volta para suas aldeias originais de onde, com suas melhores roupas, começavam a subida à montanha. Os objetos que levavam reproduziam o mundo Inca em miniatura.

No alto, bebiam “chicha”, álcool de milho, até dormir. Em seguida, eram enterrados.

Peças estavam intactas

Segundo os Incas, elas não morriam, e sim se reuniam com os antepassados para observar os povos desde o alto. As vidas entregues seriam retribuídas com saúde e prosperidade e serviam para estreitar os laços entre o centro do estado e as aldeias mais distantes (e assim manter a unidade do império inca) e também entre os homens e os deuses.

As múmias e seus objetos são capsulas do tempo de valor incalculável para ciência e para a cultura.

Vê-las intactas, 500 anos depois de suas mortes, foi uma das cenas mais emocionantes que já vivi e o mais perto que cheguei do entendimento da palavra ancestralidade.

Há bastante informação sobre o tema AQUI. 

Texto no Noblat, AQUI.

A história de cada uma das crianças (em espanhol):

O menino – Tenía siete años de edad. Estaba sentado sobre una túnica gris con las piernas flexionadas y su rostro -en dirección al sol naciente- apoyado sobre las rodillas.
Un manto de color marrón y rojo cubría su cabeza y mitad del cuerpo.
Como todos los hombres de la elite incaica llevaba cabello corto y un adorno de plumas blancas, sostenido por una honda de lana enrollada alrededor de la cabeza.
Está vestido con una prenda de color rojo; tiene en sus pies mocasines de cuero de color claro con apliques de lana marrón; posee tobilleras de piel de animal con pelaje blanco y en su muñeca derecha lleva puesto un brazalete de plata.
Sus puños están cerrados; el rostro no es visible y sus párpados están semi cerrados. Posee una ligera deformación del cráneo que sugiere su origen noble.
Como parte de su ajuar se encontraban cuatro grupos de objetos en miniatura representando caravanas de llamas conducidas por hombres con finas vestimentas, representando esto una de las principales actividades masculinas.

A Donzela – Esta joven mujer tenía unos quince años de edad. Estaba sentada con las piernas flexionadas y cruzadas, sus brazos apoyados sobre el vientre y su rostro mirando en dirección opuesta a la niña del rayo. Su largo cabello está peinado con pequeñas trenzas, como era costumbre en algunos poblados de los Andes. Los peinados y adornos en la cabeza servían para identificar a las personas cultural y geográficamente. Su rostro fue pintado con un pigmento rojo, y arriba de la boca se observan pequeños fragmentos de hojas de coca. Posiblemente esta joven haya sido una aclla o “virgen del Sol” educada en la “Casa de las Escogidas” o aclla huasi, un lugar privilegiado para las mujeres en el tiempo de los Incas.

A Menina do Raio – La Niña del Rayo
Esta niña tenía un poco más de seis años. Estaba sentada con las piernas flexionadas, las manos semiabiertas apoyadas sobre los muslos y su rostro en alto apuntando hacia el Oeste-Suroeste.
Luego de su entierro, en algún momento de los últimos siglos la elevada temperatura de una descarga eléctrica quemó parte de su rostro, cuello, hombros y brazos, como asimismo sus prendas y parte del ajuar que la acompañaba.  Su cabello lacio está peinado con dos trenzas pequeñas que salen de la frente, y lleva como adorno una placa de metal. Sus ojos están cerrados y la boca semi abierta, pudiéndose observar la dentadura. Como sinónimo de belleza y jerarquía, su cráneo fue intencionalmente modificado, teniendo una forma cónica.

Cartas de Baires: Humor em tempos de crise

Está fazendo um sucesso danado em Buenos Aires a última edição da revista Barcelona, de humor altamente ácido.  A capa faz uma sátira ao tom apocalíptico adotado pela mídia e traz a manchete “Basta de incertezas – Crise já”.

O texto argumenta que os argentinos estão cansados de não saber o que vem pela frente. “Se o país vai explodir, que exploda o quanto antes. É melhor que tudo se dane logo de uma vez, para a gente ver qual é, do que seguir esperando que tudo se vá à merda a qualquer momento” .

Mal saiu a versão digital, e a página começou ser replicada na internet, com comentários ainda mais divertidos.

Essa revista surgiu em 2002, justamente durante a pior crise econômica do país, quando a população fazia fila para fugir para a Espanha. Justo por isso se chama Barcelona  e tem como slogan “uma solução europeia para os problemas dos argentinos”. Ao celebrar seus dez anos de edição, isso não deixa de ser uma ironia.

O mesmo tom de sátira “pré-fim-do-mundo” da Barcelona foi adotado esta semana pelo cartunista Daniel Paz, na ilustração que compartilho na coluna.

A Argentina tem extensa tradição de fazer rir – e fazer pensar.

A primeira caricatura política nacional foi publicada no semanário Argos, em 1842. A partir daí os imaginativos desenhistas e humoristas hermanos não pararam mais!! Ainda bem.

Tanto é que ganharam um museu inteirinho dedicado ao humor. Inaugurado em junho em Puerto Madero, o espaço abriu com uma exposição que reúne cerca de 200 desenhos, histórias e caricaturas dos principais humoristas nacionais, com peças do princípio do século XX até hoje.

Tem como conselho curador cinco grandes nomes – Quino (criador de Mafalda), o uruguaio Hermenegildo Sábat, Carlos Garaycochea, Manuel García Ferré e Guillermo Mordillo.

Com esse espaço, Buenos Aires entra para a lista das poucas cidades que não tem medo do riso e que contam com um espaço fixo dedicado ao humor. Entre os escassos antecedentes estão o Museu da Caricatura, em Frankfurt, o Museu da Caricatura e Desenho Animado da Basiléia e a Fábrica do Humor de Alcalá de Henares, em Madri.

Nada mais merecido. Um traço ao lado do outro, no momento certo, é informação analítica, sintética e contextualizada.

De qualquer forma, com crise ou sem, a vida aqui continua cheia de graça.

Íntegra no Noblat, AQUI. 

Cartas de Baires: Tristeza de um doble A (II)

 

Foto Gisele Teixeira (Bandoneonista Ciudad Baigón)

A Argentina celebra o Dia do Bandoneon, amanhã (11), com uma notícia triste: o roubo de instrumentos não para de crescer.

A vítima mais recente foi o músico Nestor Marconi, um dos mais importantes do país e diretor da Orquestra de Tango da Cidade de Buenos Aires, que teve a casa assaltada no final de junho e perdeu dois de seus quatro “foles” preferidos.

Ambos tinham sido feitos na fábrica alemã de Alfred Arnold, produtora dos famosos Doble A (os Stradivarius do tango), que deixaram de ser fabricados em 1949 e por isso são tão cobiçados e valiosos.

Outro músico, Norberto Vogel, também teve seus quatro instrumentos roubados em novembro de 2011. Ele recebeu um chamado de uma pessoa pedindo aulas de bandoneon e não desconfiou de nada. No final da classe o tipo o ameaçou com uma arma, o amordaçou e levou um DobleAA negro, um Doble AA nacarado, um Premier nacarado e um Germânia art deco marrom.

O problema da escassez de bandoneons não é novo. Mas os roubos, sim, são uma novidade.

Estima-se que existam apenas 60 mil bandoneons em todo o mundo, sendo que apenas 20 mil devem estar na Argentina e somente uns dois mil em condições de uso. É uma espécie em extinção.

Há novas fábricas na Europa, mas com instrumentos que produzem sons diferentes, e que chegam a custar mais de sete mil euros, uma quantia exorbitante para um portenho. Não há fábricas nacionais.

Diversas peças foram vendidas para europeus e japoneses, inicialmente nas décadas de 1970 e1980, quando o tango estava em baixa na Argentina. E mais recentemente após a crise de 2001.

Já os roubos especula-se que aumentaram após a sanção da lei de proteção e promoção do bandoneon pelo Congresso argentino, em 2009. O texto proibia a saída do território nacional de todos os instrumentos de mais de 40 anos, exceto aqueles levados por seus próprios donos em apresentações artísticas.

Criava, ainda, um cadastro para facilitar sua identificação em caso de venda, roubo e extravio, e dava prioridade de compra ao governo quando houver interesse de comercialização.

A lei não “pegou”, não sei por quê. Mas alertou muita gente sobre o valor dos instrumentos, que podem chegar a mais de US$ 6 mil.

Após cada roubo, os profissionais difundem fotos e modelos dos bandoneóns perdidos nas redes sociais, bem como seus números de série. Mas estes, por estarem gravados na madeira, podem muito facilmente serem apagados. Uma pena. Provavelmente os instrumentos nunca serão encontrados.

Fica uma tristeza, só diminuída pela audição de uma das minhas novas descobertas: Dino Saluzzi, um bandoneonista com forte influencia jazzística, que compartilho com vocês.

Deixo vocês com um ótimo documentário sobre a história do bandoneón na Argentina.

Tristeza de um Doble A (I).

Cartas de Baires: Fertilidade, um direito

A Argentina segue avançado aos saltos em temas sociais polêmicos.

Muito em breve, tanto o sistema público de saúde quanto os planos privados terão de cobrir os custos de todos os tratamentos de infertilidade definidos pela Organização Mundial da Saúde como de “Reprodução Humana Assistida”.

A medida foi aprovada semana passada por ampla maioria na Câmara dos Deputados (169 votos a favor, seis abstenções e nenhum voto contra), e também deve passar com folga no Senado.

A taxa de infertilidade na Argentina varia entre 15% e 20% e são realizados em torno de seis mil procedimentos de fertilização por ano no país. Um tratamento privado custa entre 15 mil e 30 mil pesos e não raro precisa ser repetido várias vezes até ser bem sucedido.

O acesso gratuito envolve tanto tratamentos de baixa complexidade, como indução da ovulação, como de alta, a exemplo da inseminação intra-uterina em óvulos doados. Cobre também os custos de diagnóstico, medicamentos e terapias de apoio, de acordo com critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde.

Uma das criticas ao projeto é que ele não contempla o direito à identidade, tendo em vista que não estabelece a criação de um registro de doadores. Este tema específico ficou para a reforma do Código Civil, já em andamento.

Na Argentina não há uma legislação específica para a fertilização assistida. As entidades médicas entraram em um acordo que, no caso da doação de gametas (femininos ou masculinos), o doador seja anônimo. Em outros países, onde há legislação, existe um registro de doadores, com fotos e dados pessoais.

Casais do mesmo sexo, no caso de mulheres, também poderão usufruir do benefício. Os homens terão de esperar a reforma no Código Civil para utilizar o sistema chamado de “gestão por substituição”.

O debate está no ar também pela televisão argentina com a série “El Donante”, estreada recentemente. Conta a história de Bruno, um engenheiro que ganhou muito dinheiro na juventude doando esperma. Ao cumprir 45 anos, sua vida quando o personagem Violeta resolve descobrir quem é o doador que permitiu que sua mãe a concebesse. Bruno toma um susto ao constatar que 144 jovens levam seu DNA e resolve conhecê-los.

Embora o tom seja de comédia, o assunto é serio. E, por sorte, o Congresso argentino sabe disso.

Quem não tem filhos por problema de fertilidade sabe muito bem o que significa essa lei.

Esperança.

Texto no Noblat, AQUI.