Cartas de Baires: as avós cientistas

 A coluna desta semana é dedicada ao pai, com quem não pude estar no último domingo. Como alguns personagens desta história ele também é médico, também é do bem e também é avô .  Só que graças à democracia pode colocar um neto no colo e contar-lhe uma história. Mais um neto, aliás.

Que venha Thomás!

Neto 106: Pablo Javier Gaona Miranda
Foto: Fernando Gens/Télam

Com 106 netos recuperados (o último na semana passada), as Avós da Praça de Maio celebrarão seus 35 anos de trabalho em 22 de outubro próximo – Dia Nacional do Direito à Identidade.

Mas o presente quem ganha é a gente. Micros documentários de três minutos, contando a vida de cada uma das crianças encontradas e uma série chamada “99,99% – La Ciencia de las Abuelas”, que resgata um lado menos conhecido destas senhoras: a busca pelos métodos científicos que permitiram comprovar estas identidades.

Quando as avós começaram a buscar os cerca de 500 bebês roubados dos pais durante a última ditadura militar, ainda na década de 1970, se depararam com um problema. Tinham nada mais que fotos e lembranças.

Mesmo que os encontrassem, não haveria como comprovar suas filiações verdadeiras, tendo em vista que os pais estavam mortos ou desaparecidos.

Então se perguntaram: existe um elemento constitutivo do sangue que só aparece em pessoas pertencentes à mesma família? Foram atrás de geneticistas. Bateram em muitas portas.

Somente no ano de 1982 passaram por 12 países, entre eles França, Alemanha e Inglaterra, até que chegaram Blood Center de Nova Iorque e à Associação Americana para o Avanço da Ciência em Washington.

Graças a eles, um ano depois, encontraram um método que permite chegar a um percentual de 99,9% de probabilidade, mediante análises específicas de sangue. Era criado neste momento o “índice de abuelidad”, que ficou famoso no mundo. É bom lembrar que ainda faltava um tempo para que os segredos dos genes e do DNA viessem à tona como agora.

Em dezembro de 1983, no primeiro dia hábil de democracia, as avós obtiveram uma ordem judicial para analisar o sangue de uma menina, Paula Eva Logares, que elas tinham certeza era filha de desaparecidos. Foi o primeiro caso comprovado. Nunca mais pararam.

Exigiram a exumação de cadáveres, ajudaram a criar a Equipe Argentina de Antropologia Forense, fundaram o Banco Nacional de Dados Genéticos e, principalmente, ajudaram na descoberta do DNA mitocondrial, tema sobre o qual podem dar até aulas!

Não há espaço para detalhes técnicos na coluna, mas está tudo aqui, no livro “Las abuelas y la genética”,que pode ser baixado gratuitamente AQUI.

O trabalho que elas fizeram foi fundamental não somente para a restituição de identidade como para o julgamento dos genocidas. E muito mais para os geneticistas, que admitem publicamente que sem as avós não teriam chegado tão longe.

Texto completo no Noblat. 

AQUI também há boas explicações científicas e um ótimo vídeo.

Em breve os quatro episódios de 99,99% poderão ser baixados AQUI.

Cartas de Baires: Fileteado, a tipografia da cidade

“Primo” dos textos dos caminhões brasileiros

Antigo, popular e marginal como o tango, a técnica pictórica conhecida como  fileteado portenho é uma das melhores traduções de Buenos Aires. Chegou com os imigrantes, foi proibido por razões de segurança, sobreviveu de teimoso e hoje vive uma fase de redescoberta.

Grosso modo, pode-se dizer que o fileteado é um parente sofisticado das decorações das carrocerias dos caminhões brasileiros. Também começou nos carros e com frases cunhadas na sabedoria popular.

Infelizmente há poucos registros oficiais do início desse trabalho. Entre seus pioneiros estão três italianos – Cecilio Pascarella, Vicente Brunetti e Salvador Venturo – que começaram a pintar com cores as laterais as carroças que eram usadas para entregar produtos, no final do século XIX (e que até então eram cinza) e separá-las com uma linha fina de cor mais intensa ou constante, o que chamamos hoje de filete. Depois, passaram para os carros e ônibus.

A partir daí foi-se criando o repertório específico de desenhos que caracterizam o fileteado: flores, folhas, pássaros, fitas com o azul e branco da bandeira Argentina, bolas, dragões e ainda linhas retas e curvas de diferentes espessuras que vão se mesclando com cenas do campo e personagens populares, como a Virgem de Luján e Carlos Gardel.

Na década de 1970, o filete foi proibido por lei porque podia distrair os motoristas. E quase desapareceu. Mas foi justamente esta proibição que levou os filetes para outros suportes.

Diferente do que aconteceu no Brasil, na Argentina a técnica ganhou novos usos. Saiu dos veículos para os cavaletes dos ateliês de arte. Hoje se vê o fileteado por todo o lado, inclusive em roupas e, ultimamente, até na pele. A tatuagem com filete está na super na moda.

A moda agora é a tatoo fileteada!

O Iº Encontro de Fileteadores portenhos, realizado neste final de semana, no bairro de Mataderos, reuniu mais de 200 profissionais e, mesmo ignorado pela imprensa local, mostra que há um movimento para que esta arte não desapareça.

Participaram do evento grandes maestros, com mais de 50 anos de filete, e também jovens de 18 anos, que começam a fazer seus primeiros desenhos. Surpresa: muitos deles saídos da Escola de Belas Artes, que fizeram uma opção por uma técnica decorativa tradicionalmente popular.

Entre os artistas mais reconhecidos nesta técnica estão o polonês León Untroib (morto em 1994). Da geração atual, Martiniano Arce e, mais recentemente, Alfredo Genovese, que está fazendo uma revolução no uso comercial do filete, trabalhando para grandes marcas, como Nike e Coca-Cola.

A tradição gráfica do filete sobrevive e renasce, como fez o tango. Agora falta somente que se revogue o decreto que a proibiu de ser usada nos ônibus, para que volte a adornar com humor e  melancolia a cidade que a inspira.

Texto no Noblat, AQUI. 

Adoro esse!

Cartas de Baires: Santuários de Alta Montanha

Donzela teria em torno de 15 anos

Uma das manifestações mais impressionantes e menos conhecidas do Império Inca são os santuários erigidos no topo das montanhas mais altas da Cordilheira dos Andes. Estes lugares – tão perto do sol, da lua e do céu – eram centros de peregrinação e cenários para a realização de rituais.

Em toda a Cordilheira há cerca de umas 200 montanhas com restos arqueológicos, sendo 40 no território argentino. Mas em pouquíssimas foram descobertos o tesouro que guarda hoje a cidade de Salta: oferendas humanas.

Não há nada similar em outra parte do Planeta. Nem sequer no Himalaia.

A principal descoberta foi feita em 1999 no topo do Cerro Llullaillaco (6.739 metros), o mais alto da região, por uma equipe da National Geographic. Enterrados a um metro e meio de profundidade, debaixo de gelo e pedras, estavam três crianças incas em perfeito estado de conservação.

A montanha é Deus.

Uma pequena de seis anos, conhecida hoje como “A Menina do Raio”, um segundo corpo batizado de “O Menino”, de sete anos, e uma adolescente de 15 anos, “A Donzela”. As múmias podem ser vistas, uma por vez, no Museu de Arqueologia de Alta Montanha de Salta, um espaço que surpreende pelo acervo, tecnologia e respeito ao passado.

Estas crianças, os “Niños de Llullaillaco”, tinham com eles 160 peças que compunham seus respectivos “ajuares”, uma espécie de enxoval com oferendas. Estes objetos também estavam intactos e ajudaram os especialistas a entender como eram os rituais no passado pré-hispanico.

Antes de serem ofertadas às montanhas, crianças de diferentes partes do Império Inca, selecionadas por sua beleza e perfeição física, faziam uma peregrinação até Cusco, onde passavam por uma longa cerimônia, conhecida como “Capacocha”, ou “obrigação real”.

Neste momento, recebiam oferendas de todo o território – conchas marinha da costa do Equador, plumas das selvas orientais, lãs da cordilheira dos Andes. Essas pecas, que também podiam ser de madeira, ouro, prata couros ou fibras vegetais – eram levadas com eles de volta para suas aldeias originais de onde, com suas melhores roupas, começavam a subida à montanha. Os objetos que levavam reproduziam o mundo Inca em miniatura.

No alto, bebiam “chicha”, álcool de milho, até dormir. Em seguida, eram enterrados.

Peças estavam intactas

Segundo os Incas, elas não morriam, e sim se reuniam com os antepassados para observar os povos desde o alto. As vidas entregues seriam retribuídas com saúde e prosperidade e serviam para estreitar os laços entre o centro do estado e as aldeias mais distantes (e assim manter a unidade do império inca) e também entre os homens e os deuses.

As múmias e seus objetos são capsulas do tempo de valor incalculável para ciência e para a cultura.

Vê-las intactas, 500 anos depois de suas mortes, foi uma das cenas mais emocionantes que já vivi e o mais perto que cheguei do entendimento da palavra ancestralidade.

Há bastante informação sobre o tema AQUI. 

Texto no Noblat, AQUI.

A história de cada uma das crianças (em espanhol):

O menino – Tenía siete años de edad. Estaba sentado sobre una túnica gris con las piernas flexionadas y su rostro -en dirección al sol naciente- apoyado sobre las rodillas.
Un manto de color marrón y rojo cubría su cabeza y mitad del cuerpo.
Como todos los hombres de la elite incaica llevaba cabello corto y un adorno de plumas blancas, sostenido por una honda de lana enrollada alrededor de la cabeza.
Está vestido con una prenda de color rojo; tiene en sus pies mocasines de cuero de color claro con apliques de lana marrón; posee tobilleras de piel de animal con pelaje blanco y en su muñeca derecha lleva puesto un brazalete de plata.
Sus puños están cerrados; el rostro no es visible y sus párpados están semi cerrados. Posee una ligera deformación del cráneo que sugiere su origen noble.
Como parte de su ajuar se encontraban cuatro grupos de objetos en miniatura representando caravanas de llamas conducidas por hombres con finas vestimentas, representando esto una de las principales actividades masculinas.

A Donzela – Esta joven mujer tenía unos quince años de edad. Estaba sentada con las piernas flexionadas y cruzadas, sus brazos apoyados sobre el vientre y su rostro mirando en dirección opuesta a la niña del rayo. Su largo cabello está peinado con pequeñas trenzas, como era costumbre en algunos poblados de los Andes. Los peinados y adornos en la cabeza servían para identificar a las personas cultural y geográficamente. Su rostro fue pintado con un pigmento rojo, y arriba de la boca se observan pequeños fragmentos de hojas de coca. Posiblemente esta joven haya sido una aclla o “virgen del Sol” educada en la “Casa de las Escogidas” o aclla huasi, un lugar privilegiado para las mujeres en el tiempo de los Incas.

A Menina do Raio – La Niña del Rayo
Esta niña tenía un poco más de seis años. Estaba sentada con las piernas flexionadas, las manos semiabiertas apoyadas sobre los muslos y su rostro en alto apuntando hacia el Oeste-Suroeste.
Luego de su entierro, en algún momento de los últimos siglos la elevada temperatura de una descarga eléctrica quemó parte de su rostro, cuello, hombros y brazos, como asimismo sus prendas y parte del ajuar que la acompañaba.  Su cabello lacio está peinado con dos trenzas pequeñas que salen de la frente, y lleva como adorno una placa de metal. Sus ojos están cerrados y la boca semi abierta, pudiéndose observar la dentadura. Como sinónimo de belleza y jerarquía, su cráneo fue intencionalmente modificado, teniendo una forma cónica.

60 anos da morte de Evita

As celebrações em torno dos 60 anos da morte de Eva Perón estão concentradas  na Legislatura portenha, no centro da cidade.

Desde ontem, e até quinta, se pode visitar neste local o gabinete onde ela trabalhou entre 1946 e 1952, e também seu “vestidor”, uma espécie de closet, recentemente restaurado.

Há exposições de fotos, mostras de cinema, debates, visitas guiadas temáticas, arte ao vivo (com pintores e escultores realizando sus obras) e espetáculos de tango às 12h, 14h e 18h.

Os principais atos, no entanto, acontecem na quinta (dia do aniversário de sua morte), a partir das 17h, com um desfile de réplicas de vestidos de época, dirigido pelo estilista Roberto Piazza (às 17); seguido de um tributo musical com os artistas Valeria Lych e Alejandro Lerner.

Também será apresentado um livro com imagens de Evita tomadas por um de seus fotógrafos oficiais, Pinélides Fusco (18h45).

A semana é uma boa oportunidade para visitar o Museu Evita, super interessante, instalado na casa onde ela manteve uma fundação de apoio a mulheres entre as décadas de 1940 e 1950.

Os objetos expostos foram cedidos pela família de Evita e por colecionadores, e estão divididos entre diferentes fases de sua vida: a infância, os tempos em que trabalhou como atriz, seu casamento com Perón e sua morte.
Há diversas fotografias de sua vida pessoal e política, roupas, sapatos e adereços originais usadas por ela, documentos oficiais, projeções audiovisuais, além de exposições temporárias.
Museo Evita: Lafinur, 2988 – Palermo. Tel.: 4807-0306. De terça a domingo, das 11h a 19h. Entrada: 15 pesos, com visita guiada 25 pesos.

Outra boa opção é assistir, a partir do mes que vem, ao espetáculo de dança que a Andrea Castelli coreografou para o espaço. 

Sobre ausências e presenças

Pero los dinosaurios van a desaparecer

A Argentina viveu ontem um dia histórico, com a condenação a 50 anos de prisão do ex presidente de facto Jorge Rafael Videla pela elaboração e execução de uma prática sistemática de roubo e ocultação de bebes e menores de idade durante a ditadura militar. Cerca de 400 crianças desapareceram entre 1976 a 1983.

É a primeira sentença da Justica argentina para estes crimes.

Além de Videla, outros repressores foram condenados, entre eles Reynaldo Bignone, Santiago Riveros, Antonio Vañek e Jorge “El Tigre” Acosta.

 “Es un día memorable para la Argentina y para todo el mundo civilizado que sabe que en un país donde no hay justicia, no puede haber democracia. Y acá la estamos haciendo entre todos”, disse Estela de Carlotto, presidenta de Abuelas de Plaza de Mayo.

Videla nunca se arrependeu do que fez. Semana passada, ao pronunciar suas últimas palavras antes da sentença, acusou às mulheres detidas de “usarem seus filhos embrionários como escudos”. E anunciou que aceitaria a condenação como um “ato de serviço e um aporte à paz da nação”.

Matéria completa do Página 12. 

Aproveito para divulgar neste post algumas fotos do projeto Ausências, de Gustavo Germano. 

Germano nasceu em Entre Rios, na Argentina. Teve seu irmão desaparecido durante a ditadura militar argentina, que durou oito anos. Radicado em Barcelona, o fotógrafo voltou 30 anos depois a sua cidade natal, e foi lá onde registrou a ausência dos muitos argentinos anônimos e de seus amigos e familiares.

Ausencias traz uma série de dípticos e entre cada imagem há uma lacuna temporal de cerca de 30 anos. Anos passados tanto para aqueles que desapareceram durante a ditadura militar, quanto para aqueles que ficaram à espera, sem possibilidade do encontro ou luto. A simplicidade das imagens vai de encontro à grandeza de sua mensagem.

Em cada díptico há uma imagem feita no início da ditadura. Nela, estão juntos irmãos, amigos e familiares. A segunda imagem, feita por Germano, retorna ao local da primeira, e os mesmos elementos a compõem, exceto os desaparecidos durante a ditadura.

Tierra de los Padres, filme sobre o Cemitério da Recoleta

Tem mais de um ano que espero a chegada deste filme aos cinemas. Pode ser visto a partir do dia 5 de julho, na sala Leopoldo Lugones.

Depois de sua estréia mundial com sucesso, em Toronto, no ano passado, a película sofreu um certo rechaço em vários festivais e não participou, por exemplo, do Bafici.

O filme conta o enfrentamento de duas versões da história argentina: a dos vencedores e a dos vencidos. Com a particularidade de que o faz por meio de um espaço concreto e simbólico ao mesmo tempo: o Cemitério da Recoleta, no qual repousam juntos os que no passado lutaram em lados opostos.

Esse recorrente enfrentamento (ainda hoje presente) é posto em cena através de citações lidas junto às tumbas, dando lugar a uma espécie de “diálogo de mortos” que vai debulhando a história.

Há uma crítica interessante AQUI e várias fotos sobre o filme AQUI, em Cinema Nacional.

Tierra de los Padres (Fatherland) Oficial Trailer from Trivial Media on Vimeo.

Comedoria popular: para matar as saudades do Recife

Delícia!

Este fim de semana recebi dois presentes que são uma delícia.

Primeiro, conheci a Renata Gamelo, uma pernambucana de carteirinha, daquelas que falam “pra tu”, super agitada, conversadora. Está em Buenos Aires pesquisando o design local.

Como se uma nova amizade não fosse regalo suficiente para um dia, ela me deu um livro chamado Comedoria Popular – Receitas, Engenhos e Fazendas de Pernambuco, de Ana Cláudia Frazão.

A obra esmiúça a culinária de um dos mais importantes capítulos da história brasileira, o Ciclo Açucareiro, em especial o da cultura gastronômica dos engenhos pernambucanos e as particularidades dos cardápios das fazendas, com algumas das receitas que fazem parte do Patrimônio Cultural e Imaterial do Estado.

A primeira parte do livro apresenta dez engenhos e a peculiaridade gastronômica de cada um. A segunda, traz as receitas. Para a gente, que está longe, poder matar as saudades de um camarão ao molho de coco e queijo coalho, por exemplo (tem tudo no Bairro Chino, sem desculpas!).

O livro traz ainda a escala cromática das receitas constando o valor nutricional de cada preparação, testadas em uma cozinha experimental e ilustradas.

Este é o segundo livro de Ana Paula, que lançou em 2008 o “Comedoria Popular – receitas, feiras e mercados do Recife”, que já vendeu mais de 8 mil exemplares.

Deixo vocês com uma receita perfeita para o inverno que está chegando: creme de macaxeira com charque. Mais fácil impossível.

CREME DE MACAXEIRA COM CHARQUE

½ kg Macaxeira
½ kg Charque
1 ½  cebola
2 dentes de alho
1 pitada salsinha
1 pitada sal

Descasque a macaxeira e cozinhe com uma cebola inteira e o 1 dente de alho. Bata no liquidificador  a macaxeira, com a própria água e a cebola e o alho. Reserve.
Corte em pedacinhos a gordura da charque e leva ao fogo. O restante da carne escalda para tirar o sal e cozinhe na pressão por 15 minutos. Depois desfia a carne e frita na gordura da própria carne, com a ½ cebola e mais um dente de alho.
Misture o creme de macaxeira com a charque e leve ao fogo  mexendo por 15 minutos. Adicione a salsinha para finalizar.

Quer saber de onde vem essa receita? O mapa segue abaixo:

PS: O Edu já está lá no fogão!

Cartas de Baires: Heróis estaqueados

“El que estuvo al frío mucho tiempo quiere estar quieto, quedarse al frío temblando y dejarse enfriar hasta que todo termina de doler y se muere”

Los Pichiciegos – Rodolfo Fogwill

Os maus tratos sofridos pelos soldados argentinos durante a Guerra das Malvinas foi uma das facetas mais cruéis do conflito contra a Inglaterra.

Os depoimentos publicados pelos jornais de ontem, aos 30 anos do início da batalha, mostram que o pior inimigo das tropas revelou-se ser o próprio exército nacional, que tinha entre seus comandantes alguns repressores da Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA) e da Base Naval de Mar del Plata. Muitos deles fizeram na ilha o que já tinham feito no continente.

Além de passarem fome e frio, os soldados foram torturados das mais diversas maneiras. Entre os “castigos” aplicados às tropas (em 90% dos casos por roubarem comida) estava a chamada estaca.

Os militares colocavam quatro estacas no chão e prendiam os soldados ali, com os braços e pernas esticados, a uns dez centímetros da terra, durante horas, em um frio de 20 graus abaixo de zero. Os mais rebeldes recebiam uma granada na boca para não ter perigo de se mexerem.

Outras torturas incluíam submergir os soldados em poços de água fria ou obrigá-los a ficarem horas com os pés nestes lugares. A exposição a baixas temperaturas de maneira prolongada causava inchaço nas pernas e pés, o que os impedia de tirar as botinas. Muitos nunca mais voltaram a caminhar.

Outros foram obrigados a urinar sobre os companheiros ou a comer alimentos misturados aos próprios excrementos. Isso sem falar no repertório sádico militar “tradicional”, como saltar ao lado de campos minados.

Quando os soldados voltaram das Malvinas, tiveram que assinar uma declaração jurada de que não iam falar sobre a guerra porque esta era uma “questão de Estado”. Era a condição para serem liberados. Por isso os detalhes das torturas demoraram tanto em aparecer.

Um dos primeiros a abordar o tema foi o ex-soldado e jornalista Edgardo Esteban, autor do livro Iluminados pelo Fogo, de 1993, que mais tarde virou filme nas mãos do diretor Tristan Bauer.

Agora há dezenas de depoimentos que falam, ainda, da quantidade de comida encontrada nos galpões argentinos no final da guerra, após os soldados serem capturados pelos ingleses.

Depois de quase morrem de fome (alguns voltaram com 40 quilos), eles dormiram sobre montanhas de queijos, doces, laranjas, carne em lata e até uísque – comida que os militares argentinos se negaram ou foram incapazes de repartir entre os soldados.

O que os ex-combatentes querem agora é que as torturas a que foram submetidos sejam consideradas crimes contra a humanidade. E, portanto, imprescritíveis.

Querem o reconhecimento de que a Guerra das Malvinas foi parte de uma ditadura que seqüestrou, torturou e matou. E que os 74 dias de conflito não foram mais que a continuidade deste processo, inclusive com alguns protagonistas repetidos.

Texto no Noblat, AQUI. 

Cartas de Baires: arte e paixão no subsolo

Siqueiros e Blanca

A Plaza de Mayo tem um novo atrativo, o Museu do Bicentenário e, dentro dele, uma jóia que ficou mais de um século abandonada: o mural Exercício Plástico, do mexicano David A. Siqueiros (1896-1974).

A obra tem uma história que mistura arte, amor, traição, dinheiro, poder.

Tudo começou em 1933 quando Siqueiros desembarcou em Buenos Aires acompanhado da mulher, a poeta uruguaia Blanca Luz Brum.

Siqueiros é considerado, junto a Diego Rivera e José Clemente Orozco, um dos pais fundadores da escola muralista mexicana, que proclamou uma arte pública dedicada a temas revolucionários e sociais com o objetivo de inspirar as classes populares.

Aqui, o casal conheceu Natalio Botana, fundador do jornal Crítica e excêntrico milionário argentino. Foi ele quem pediu ao artista que pintasse um mural num porão de sua casa de campo, na periferia de Buenos Aires.

O mexicano aceitou a oferta e convocou três jovens pintores para a empreitada: Antonio Berni, Lino Spilimbergo e Juan Carlos Castagnino – que depois fariam os murais da Galeria Pacifico e dariam início ao movimento muralista argentino. Completava a equipe o cenógrafo uruguaio Enrique Lázaro.

Foto AFP

A obra foi executada em apenas três meses e é a única em que Siqueiros driblou a temática política e social. Pintou sua mulher, Blanca, com uma técnica moderna para sua época.

Os artistas substituíram o pincel pelo aerógrafo, o desenho pela fotografia, o óleo pelas resinas sintéticas o banco acadêmico por um ponto de vista arbitrário que se desloca o tempo todo. A intenção era simular uma caixa de cristal afundada na água e visitada por voluptuosas figuras aquáticas.

Para isso, usaram slides que se projetavam de forma oblíqua contra a parede. Como os muros do subsolo eram curvos, as imagens das mulheres nuas se deformavam e os contornos eram traçados a partir dessas imagens.

Blanca não foi somente musa inspiradora: sua figura dotou o mural de um halo de lenda e misticismo. Enquanto Siqueiros pintava o corpo nu de sua mulher no subsolo, Blanca se convertia em amante de Botana. A obra é, dessa forma, também um retrato do fim de um romance.

Pouco tempo depois, Siqueiros apoiou uma greve de trabalhadores e foi expulso do país. Blanca ficou na Argentina, com Botana.

Com a morte do empresário em 1941, a propriedade foi vendida e a mulher do novo dono tentou destruir o trabalho com ácido, por considerá-lo muito pornográfico. Não deu certo. Ela então tapou o mural com cal.

Em 1989 o lugar foi comprado por Héctor Mendizábal, que decidiu resgatar o mural e o separou em cinco pedaços como se fosse um quebra-cabeças, com a intenção de mostrá-la ao mundo.

A obra de engenharia foi super sofisticada, mas esbarrou com um problema judicial e os pedaços ficaram 17 anos guardados em caixas até que, em 2003, Nestor Kirchner declarou o trabalho de interesse artístico e o Senado aprovou a sua expropriação.

Com uma história assim, o mural já virou filme. Aliás, dois. A ficção El Mural de Siqueiros, de Hector Oliveira (o mesmo de Patagônia Rebelde), e o documentário Los Próximos Pasados, de Lorena Muñoz. 

Texto no Noblat, AQUI.

Textos técnicos sobre o tema:

1. O MURAL DE SIQUEIROS NA ARGENTINA – ARTE E POLÍTICA NA AMERICA LATINA, do historiados Daniel Schávelzon, publicado na revista Contratiempo. Integra AQUI. 

2. Un “Ejercício Plástico” para el arte, de María Laura Guevara (Agencia CTyS). 

Francisco Tenório Jr: para lembrar e escutar


Reproduzo no blog a coluna de Ruy Castro, publicada hoje na Folha de Sáo Paulo. A dica foi do Iberê.

No dia 18 de março de 1976, o pianista brasileiro Francisco Tenório Jr., 33, estava em Buenos Aires para uma temporada no Teatro Rex com seus patrícios Vinicius de Moraes e Toquinho. Naquela noite, saiu do hotel Normandie, onde estavam hospedados, e deixou um bilhete: “Vou comprar cigarros e um remédio. Volto já”. Não voltou -nunca mais.

Fora confundido com um militante procurado pela ditadura argentina e levado preso. Por falar bem espanhol e com sotaque portenho, não acreditaram que fosse brasileiro, músico e inocente. Passaram a torturá-lo, com a colaboração, a partir do quinto dia, de agentes brasileiros da Operação Condor, braço internacional das ditaduras argentina, brasileira, chilena e uruguaia.
Nove dias depois, seus algozes se convenceram de que tinham se enganado. Mas, já então, Tenório estava cruelmente machucado. Pior: vira o rosto deles. Não podiam devolvê-lo à rua. O jeito era matá-lo, o que fizeram com um tiro, no dia 27. Dali Tenório foi dado como “desaparecido”, e o Brasil nunca se empenhou em elucidar o fim de um de seus filhos mais talentosos -autor, em 1964, aos 21 anos, do grande disco instrumental “Embalo”.

Os detalhes gravíssimos sobre a morte de Tenório só começaram a aparecer dez anos depois, em 1986, e mesmo assim porque um membro da inteligência argentina resolveu contar. Pois, agora, os argentinos, que não estão varrendo a sua ditadura para debaixo do tapete, nos darão em breve nova lição.

No dia 16 de novembro, às 14 h, a cidade de Buenos Aires, por iniciativa do deputado portenho Raul Puy, homenageará Tenório com uma placa na fachada do hotel Normandie, na rua Rodríguez Peña, 320, de onde ele saiu para morrer. Ela dirá: “Aqui se hospedou este brilhante músico brasileiro, vítima da ditadura militar argentina”.

Mais informações sobre o “desaparecimento” do músico AQUI.