Cartas de Baires: A educação proibida

Nem o último de Ricardo Darín, nem o novo Batman. Um dos filmes de maior recorde de público em Buenos Aires nas últimas semanas se chama A Educação Proibida, do diretor argentino Germán Doin.

Em pouco mais de 15 dias,  foram 605 projeções independentes em cerca de 20 países, mais de 2,8 milhões de reproduções na web, 300 mil downloads e 55 mil fãs em Facebook (dados de domingo).

Tudo isso para um documentário de duas horas e meia sobre um tema que geralmente não dá grande bilheteria: a educação.

O diretor tem apenas 24 anos e o projeto foi todo financiado coletivamente por 704 pessoas que colocaram US$ 62.700 para viabilizar as mais de 90 entrevistas com educadores de oito países.

O filme mescla animação, dramatização com voz em off, entrevistas e uma história de ficção para questionar o atual sistema educativo no Ocidente. Criado há mais de 200 anos, mantém até hoje uma estrutura vertical, baseada na competição, divisão de idades, classes obrigatórias, currículos desvinculados da realidade e sistema de prêmios e castigos.

“Longe de responder às necessidades e desejos dos pequenos, a escola hoje é um estacionamento de crianças, onde elas ficam sendo adestradas até o momento de trabalhar. Se algum não se adapta ao sistema, fracassa. O que não se vê é que não é o estudante que fracassa, e sim o sistema que está mal pensado”, resume um dos entrevistados, o investigador chileno Carlos Muñoz.

O documentário também se propõe a discutir outros modelos de ensino – as experiências proibidas – como a logosofia, Montessori, Waldorf, Killpatrick e Paulo Freire, para citar alguns. Todos estão detalhados no site do filme, onde também se pode baixar o documentário ou vê-lo on line: http://www.educacionprohibida.com

O  diretor não defende nenhum método específico, somente pensar a educação retirando o professor e os conteúdos do centro da cena e colocando aí o aluno, com seus desejos e aptidões individuais. Esquecer a idéia de disciplina, autoridade e competência, e a substituir por respeito, liberdade e amor.

Em entrevistas ao jornal Página 12, Germán Doin afirma que tem duas teses para o sucesso do filme, uma pessimista e outra positiva.  A primeira é que se trata de um fenômeno das redes sociais. A segunda, que há uma necessidade urgente de falar sobre educação.

No momento em que o prefeito de Buenos Aires, Mauricio Macri, instala um 0800 nas escolas públicas para denunciar atividades de cunho político entre os estudantes, não tenho a mínima dúvida sobre qual das duas opções está correta. O tema está na pauta. Por sorte.

Seguem abaixo o trailer e o filme completo:

Texto no Noblat, AQUI. 

Cartas de Baires: Fileteado, a tipografia da cidade

“Primo” dos textos dos caminhões brasileiros

Antigo, popular e marginal como o tango, a técnica pictórica conhecida como  fileteado portenho é uma das melhores traduções de Buenos Aires. Chegou com os imigrantes, foi proibido por razões de segurança, sobreviveu de teimoso e hoje vive uma fase de redescoberta.

Grosso modo, pode-se dizer que o fileteado é um parente sofisticado das decorações das carrocerias dos caminhões brasileiros. Também começou nos carros e com frases cunhadas na sabedoria popular.

Infelizmente há poucos registros oficiais do início desse trabalho. Entre seus pioneiros estão três italianos – Cecilio Pascarella, Vicente Brunetti e Salvador Venturo – que começaram a pintar com cores as laterais as carroças que eram usadas para entregar produtos, no final do século XIX (e que até então eram cinza) e separá-las com uma linha fina de cor mais intensa ou constante, o que chamamos hoje de filete. Depois, passaram para os carros e ônibus.

A partir daí foi-se criando o repertório específico de desenhos que caracterizam o fileteado: flores, folhas, pássaros, fitas com o azul e branco da bandeira Argentina, bolas, dragões e ainda linhas retas e curvas de diferentes espessuras que vão se mesclando com cenas do campo e personagens populares, como a Virgem de Luján e Carlos Gardel.

Na década de 1970, o filete foi proibido por lei porque podia distrair os motoristas. E quase desapareceu. Mas foi justamente esta proibição que levou os filetes para outros suportes.

Diferente do que aconteceu no Brasil, na Argentina a técnica ganhou novos usos. Saiu dos veículos para os cavaletes dos ateliês de arte. Hoje se vê o fileteado por todo o lado, inclusive em roupas e, ultimamente, até na pele. A tatuagem com filete está na super na moda.

A moda agora é a tatoo fileteada!

O Iº Encontro de Fileteadores portenhos, realizado neste final de semana, no bairro de Mataderos, reuniu mais de 200 profissionais e, mesmo ignorado pela imprensa local, mostra que há um movimento para que esta arte não desapareça.

Participaram do evento grandes maestros, com mais de 50 anos de filete, e também jovens de 18 anos, que começam a fazer seus primeiros desenhos. Surpresa: muitos deles saídos da Escola de Belas Artes, que fizeram uma opção por uma técnica decorativa tradicionalmente popular.

Entre os artistas mais reconhecidos nesta técnica estão o polonês León Untroib (morto em 1994). Da geração atual, Martiniano Arce e, mais recentemente, Alfredo Genovese, que está fazendo uma revolução no uso comercial do filete, trabalhando para grandes marcas, como Nike e Coca-Cola.

A tradição gráfica do filete sobrevive e renasce, como fez o tango. Agora falta somente que se revogue o decreto que a proibiu de ser usada nos ônibus, para que volte a adornar com humor e  melancolia a cidade que a inspira.

Texto no Noblat, AQUI. 

Adoro esse!

Cartas de Baires: Humor em tempos de crise

Está fazendo um sucesso danado em Buenos Aires a última edição da revista Barcelona, de humor altamente ácido.  A capa faz uma sátira ao tom apocalíptico adotado pela mídia e traz a manchete “Basta de incertezas – Crise já”.

O texto argumenta que os argentinos estão cansados de não saber o que vem pela frente. “Se o país vai explodir, que exploda o quanto antes. É melhor que tudo se dane logo de uma vez, para a gente ver qual é, do que seguir esperando que tudo se vá à merda a qualquer momento” .

Mal saiu a versão digital, e a página começou ser replicada na internet, com comentários ainda mais divertidos.

Essa revista surgiu em 2002, justamente durante a pior crise econômica do país, quando a população fazia fila para fugir para a Espanha. Justo por isso se chama Barcelona  e tem como slogan “uma solução europeia para os problemas dos argentinos”. Ao celebrar seus dez anos de edição, isso não deixa de ser uma ironia.

O mesmo tom de sátira “pré-fim-do-mundo” da Barcelona foi adotado esta semana pelo cartunista Daniel Paz, na ilustração que compartilho na coluna.

A Argentina tem extensa tradição de fazer rir – e fazer pensar.

A primeira caricatura política nacional foi publicada no semanário Argos, em 1842. A partir daí os imaginativos desenhistas e humoristas hermanos não pararam mais!! Ainda bem.

Tanto é que ganharam um museu inteirinho dedicado ao humor. Inaugurado em junho em Puerto Madero, o espaço abriu com uma exposição que reúne cerca de 200 desenhos, histórias e caricaturas dos principais humoristas nacionais, com peças do princípio do século XX até hoje.

Tem como conselho curador cinco grandes nomes – Quino (criador de Mafalda), o uruguaio Hermenegildo Sábat, Carlos Garaycochea, Manuel García Ferré e Guillermo Mordillo.

Com esse espaço, Buenos Aires entra para a lista das poucas cidades que não tem medo do riso e que contam com um espaço fixo dedicado ao humor. Entre os escassos antecedentes estão o Museu da Caricatura, em Frankfurt, o Museu da Caricatura e Desenho Animado da Basiléia e a Fábrica do Humor de Alcalá de Henares, em Madri.

Nada mais merecido. Um traço ao lado do outro, no momento certo, é informação analítica, sintética e contextualizada.

De qualquer forma, com crise ou sem, a vida aqui continua cheia de graça.

Íntegra no Noblat, AQUI. 

Cartas de Buenos Aires: Não é crime passional. É femicídio

Semana passada o ex-baterista do grupo argentino Callejeros, Eduardo Vásquez, foi condenado a 18 anos de prisão pela morte da companheira Wanda Taddei. Em fevereiro de 2010 ela teve 60% do corpo queimado com álcool e morreu após 11 dias de agonia, aos 29 anos, deixando dois filhos.

Na época, o músico alegou que havia sido um acidente. A Justiça entendeu diferente. As perícias revelaram que as queimaduras indicavam que o álcool foi derramado de cima para baixo, em um ato deliberado de querer provocar um dano.

O fato de Vásquez ser baterista de uma banda conhecida (a mesma envolvida na tragédia de Cromañon, quando morreram 194 pessoas) deu imensa repercussão ao caso. O impacto social foi tremendo. Só que negativo.

A partir desta morte, cresceram significativamente o número de mulheres que morreram queimadas no país: até agora são 51 vítimas. Nos dois anos prévios à morte de Wanda, casos deste tipo se contavam nos dedos. Foram dois em 2008 e seis em 2009 segundo o Observatório de Femicídios da Argentina, coordenado pela Casa del Encuentro.

Depois do ataque, o número de vítimas subiu para 10 em 2010 e para 28 em 2011. Este ano já são 11 mortes registradas, além de 17 mulheres que continuam internadas em estado grave.

Na maioria das vezes elas foram agredidas por seus atuais ou ex-maridos, noivos, namorados.

Em abril, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto que agrava para prisão perpétua as condenações em caso de violência de gênero com vínculo. Vasquez teve uma condenação leve, atenuada por “emoção violenta”.

Considera-se que o vínculo é um agravante do homicídio, uma vez que 80% dos crimes são cometidos por conhecidos. As estatísticas não oficiais mostram que a casa – o espaço íntimo – é o cenário escolhido para cometer os assassinatos.

O episódio abriu uma discussão também na mídia sobre como cobrir a violência de gênero. O grupo de170 jornalistas que fazem parte da “Rede por uma comunicação Não Sexista” elaborou um manual com algumas recomendações. Entre elas não falar de crime passional – já que nenhuma paixão justifica a violência- e sim de femicídio.

Femicídio é um neologismo e significa o assassinato de mulheres como resultado extremo da violência de gênero. Ocorre tanto em âmbito privado como público e compreende as mortes de mulheres em mãos de companheiros (ou ex), namorados ou familiares, e também as mortes por agressores sexuais e violadores.

Eu nem sabia da existência dessa palavra. Agora eu sei e me uno ao combate a esse tipo de violência, para que a gente possa – um dia, quem sabe – sair da Idade Média.

 

Acesse o texto no blog Noblat

 

Cartas de Baires: 24 de junho, dia de visita a Gardel

Muitos argentinos, talvez cansados de esperar por soluções no plano terrestre, elevaram o cantor de tangos Carlos Gardel à categoria de santo milagreiro.

Há mais de 400 placas em seu túmulo, no Cemitério da Chacarita, o maior de Buenos Aires, com pedidos de diversas naturezas e em reconhecimento às “graças alcançadas”.

“Gracias Carlos por el favor recibido para mi sobrino”, depositou por lá um anônimo. “Carlitos, hacé crecer mi pelo”, implora Anabel em um grafiti.

Todo o dia 24 de junho, data de aniversário da morte do cantor, os fãs fazem uma peregrinação à tumba onde estão seus restos mortais. Há uma espécie de tertúlia que começa desde cedo na Rua 33, ao redor de uma estátua em tamanho natural de Gardel.

Músicos, cantores, dançarinos e “fiéis” em geral deixam flores, velas e cigarros ao mestre, e passam o dia lembrando suas canções mais famosas. A cada tango iniciado, surge uma onda de “ohhhhh”…e começa o coro.

El día que me quieras”, “Volver”, “Bandoneón arrabalero”, “Por una cabeza”. Todo mundo se emociona, conta histórias, dança, se abraça. Um acontecimento.

Às 3h10, hora da morte do cantor, há um minuto de silencio. Depois, a movimentação continua, até o final da tarde.

Embora o cemitério da Recoleta seja o mais famoso da cidade e reúna as famílias mais poderosas, prefiro o da Chacarita porque tem mais “gente conhecida”. Todos os grandes nomes do tango terminaram lá.

No Setor 7E estão as celebridades “com estátua”: Osvaldo Pugliese no piano, Augusto Magaldi na voz e violão, e Aníbal Troilo (o Pichuco), no bandoneon. Nesta ala estão também os restos deJulio e Franciscode Caro, Carlos di Sarli, Homero Manzi e Roberto Goyeneche.

A lista de tangueiros na Chacarita é impressionante: há pelo menos 50 nomes famosos a serem visitados por amantes do gênero. Entre eles o brasileiro Alfredo Le Pera, parceiro de Gardel e um dos maiores letristas da história do 2×4.

Para quem não sabe, Gardel foi músico, compositor, intérprete e ator. Deixou 11 filmes e mais de 800 discos gravados. Sua voz é considerada, desde 2003, “patrimônio da humanidade” pelo UNESCO.

O cantor morreu em 1935, em um acidente de avião. Ele voava de Bogotá para Cali, na Colômbia, onde cantaria naquela mesma noite do dia 24 de junho. Quando recebeu a autorização para decolar, as asas do avião em que estava se chocaram com outra aeronave, resultando numa violenta explosão e um incêndio, que deixou dez mortos.

Entre eles, Gardel, identificado pela bela dentadura e por uma pulseira onde tinha gravado seu nome e endereço – Jean Jaures 735, Buenos Aires.

Com vocês, uma das melhores interpretações do clássico dos clássicos. Instrumental, claro. Porque a voz de Gardel é insubstituível!

 

Com 95 hectares, o equivalente a 40% do bairro, o Cemitério da Chacarita foi criado após o surto de febre amarela de 1871, que matou 13.500 pessoas na cidade (em apenas um só dia foram enterrados 540 corpos). O lugar tem muita história para contar e várias delas me chegaram pelas mãos de Hernán SantiagoVizzari, pesquisador dedicado aos costumes funerários, autor do blog Cementerio Chacarita e do primeiro museu funerário virtual de língua hispânica.

Texto no Noblat, AQUI. 

Cartas de Baires: Lixo, vergonha portenha

Cartão postal diário

Os turistas que se hospedam em Recoleta e Palermo, bairros que recebem mais atenção por parte do governo de Buenos Aires, talvez não reparem tanto. Mas basta sair destas regiões para constatar que a cidade fica tomada pelo lixo todos os finais de tarde. Plásticos voando, comida espalhada pelo chão. O cenário é desolador.

A cadeia do desastre é a seguinte. Ao anoitecer, os moradores colocam o lixo na frente das suas casas e prédios, sem respeitar o horário de coleta e sem fazer a separação entre resíduos secos e orgânicos. Em seguida aparecem os catadores, que abrem todos os sacos em busca de papel e papelão para reciclar. O que não serve fica jogado na calçada. Bem mais tarde passa o caminhão da empresa coletora, mas aí o estrago já está feito.

A capital argentina tem uma excelente lei, chamada Basura Cero (Lixo Zero, em português), aprovada em 2005, que prevê a redução progressiva da quantidade de lixo mandado aos aterros sanitários.

A primeira meta previa uma redução de 30% do total de resíduos produzidos (em comparação com 2004), já em 2010, terminando em 2017, quando o governo portenho não poderia mais (em tese) mandar resíduos recicláveis a nenhum aterro.

Não deu certo. Pior. A produção de lixo aumentou.

Cifras oficiais mostram que a cidade destinou aos aterros 1.847.748 toneladas em 2009, volume que chegou a 2.277.772 milhões em 2011. Ou seja, um aumento de 23%. Estimativas de hoje apontam para uma produção de 6300 toneladas de lixo diárias em Buenos Aires. Segundo o Greenpeace, é a cidade que mais produz lixo na América Latina.

Essa evolução, além de demonstrar o total fracasso da gestão municipal, aponta o descaso dos cidadãos portenhos em solucionar o problema. Que é deles, também.

O prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri, iniciou nova campanha e promete “conteinizar” a cidade até 2013, quando toda a população será obrigada a separar seus resíduos. Mas sem uma forte campanha de educação ambiental isso não vai dar em nada, porque é preciso que o lixo chegue aos conteineres de forma correta, o que não acontece.

Para completar, Macri e a presidente Cristina Kirchner, que já se engalfinhavam por diversos temas, semana passada começaram a brigar também por este. A Casa Rosada tem feito pressão para que a prefeitura pague cada vez mais caro pelo seu lixo – que na verdade é depositado em outra cidade – ou então que o processe na capital.

Não sei quem tem razão, mas é muito bom que este assunto tenha voltado para a pauta. Senão a gente corre o risco de que os “buenos” aires fiquem só no nome.

E para que a coluna não termine em baixo astral, deem um espiada nesse blog: Fotos Encontradas. É lixo 100% portenho! Há um post específico sobre este projeto AQUI. 

Texto completo no NOBLAT, aqui.

Cartas de Baires: dormindo com o time

O Boca Juniors é uma máquina de fazer dinheiro. O time que registra 24 títulos e fatura mais de US$ 35 milhões por ano (sem contar a venda de jogadores) vai marcar mais um golaço este mês: a abertura do primeiro hotel temático de uma equipe de futebol.

São 17 luxuosos andares na rua Tacuari, em Montserrat, resultado de um investimento de US$ 25 milhões de dólares e que o prefeito local Mauricio Macri (ex presidente do clube) já declarou de “interesse cultural”.

O Hotel Boca tem 7,5 mil metros quadrados, 85 suítes e um canal de televisão exclusivo que durante 24 horas transmitirá partidas históricas do time azul e amarelo em cada um dos quartos.

A primeira vista a proposta pode parecer “brega”, mas como o marketing do time não é bobo eles trabalharam para que tudo parecesse refinado e elegante. E conseguiram.

A obra é assinada pelo arquiteto uruguaio Carlos Ott, e os interiores contam mobiliários e roupas de cama italianas, tapetes criados pelo artista Martin Churba e gentilezas da marca francesa L’Occitane.

O hotel, que fica no meio do caminho entre o Obelisco e La Bombonera, ainda nem abriu as portas e já tem reservas até junho, principalmente de torcedores da Itália, França, Inglaterra, Alemanha, Brasil e Colômbia. As diárias vão custar de 250 a 800 dólares.

Os criadores de projeto dizem que o hotel foi elaborado para que os clientes passem muito tempo no espaço. Além de piscina climatizada e banheiras de hidromassagem em todas as suítes, foram instaladas umas placas de LCD que imitam um mirante 3D do estádio La Bombonera e espalhadas relíquias de torcedores. Desde camisetas assinadas pelos jogadores até álbum de figurinhas dos anos 1960.

As portas dos quartos são pintadas com a imagem de diferentes jogadores históricos – de Gatti a Tevez – e nos valores de cada suíte já está incluída uma entrada para a “cancha”, com passe livre nos treinamentos e encontros com diferentes jogadores.

Mas essa não é a primeira “inovação” do Boca. O time foi pioneiro, em 2006, na criação de um cemitério exclusivo para os torcedores. O local fica a 30 km ao sul da capital argentina e tem capacidade para três mil sepulturas. Os mais fanáticos podem mandar fazer, sob encomenda, um caixão licenciado. Duas lendárias figuras do time estão lá: os goleiros Juan Estrada e Júlio Elias Musimessi.

Por enquanto, melhor fazer a reserva no hotel, né?

 

Texto no Nobalt, AQUI. 

Cartas de Baires: Mecenas modernos

Cada vez mais "famosos" aderem ao financiamento coletivo

Vocês já ouviram falar em crowdfunding ou financiamento coletivo de projetos? Aqui na Argentina a novidade pegou de vez e começa a atrair celebridades.

A premissa é relativamente simples: pessoas com idéias, mas sem dinheiro para viabilizá-las, apresentam seus projetos na internet. Quem acredita na proposta paga para ver. Isto é, banca financeiramente a iniciativa por meio de uma doação. E recebe em troca uma “recompensa”.

Há poucos dias um famoso ator e humorista argentino, Alfredo Casero, apostou neste sistema para financiar o projeto Cha3DMubi para produção de um filme.

Casero ficou muito conhecido pela série cult Cha Cha Cha, de humor surreal, que completou cinco temporadas na década de 1990 e deixou uma legião gigantesca de fãs pelo país.

Desta vez, precisa arrecadar 22 mil dólares em 55 dias. Até agora, 282 “produtores” já se associaram ao projeto, uma espécie de “Cha Cha Cha Return”, que alcançou 51% da meta em 31 dias.

No financiamento coletivo, em geral as contribuições são bem pequenas, e o que conta é o volume e a recompensa, que deve ser atrativa o suficiente para que haja algum interessado.

No projeto de Casero, as doações iniciam em 5 e 12 dólares, o valor de um postal ou de uma entrada, mas podem chegar até 2 mil dólares. Nesse caso o doador tem, além de um par de entradas, um jantar com o humorista, nomes nos créditos do filme como produtor executivo, entrada para a avant première, acesso aos camarins, e ainda duas camisetas oficiais do filme.

Entre os famosos que aderiram à novidade está também a artista plástica Marta Minujin, que arrecadou quase 3 mil dólares para a produção de uma edição limitada de 100 garrafas de vinhos da bodega Catena com rótulos feitos por ela.

O financiamento coletivo funciona graças à interação social na web, em redes como Twitter e Facebook, e é super democrático. Qualquer pessoa pode tentar vender seu projeto. No caso do Ideame, que funciona na Argentina, Brasil, Chile e México a iniciativa já financiou, desde 2011, mais de 700 projetos.

Se o interessado não alcança o valor necessário, o dinheiro é devolvido a todo mundo que participou.

Deixo vocês com Casero e com um dos personagens dele que eu mais gosto, o Batman, numa convenção de Batmans do Mercosul. Detalhe para o Batman uruguaio que está sempre com o mate e a cuia, o paraguaio que reclama da capa quente, o brasileiro com calção estampado dançando a marcha peronista. Só escracho.

 

Texto no Noblat, AQUI. 

Recomendacoes para um projeto exitoso, AQUI.

 

 

Cartas de Baires: Haitianos, desastres ambientais e novas migrações

Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

(Haiti, Caetano Veloso)

Lembro a resposta do meu editor quando, em 2003, em Brasília, pedi a ele que me mudasse da editoria de política para a de meio ambiente. “Você quer sair da capa para ir para a última página?”. Na época já não tinha a mínima dúvida sobre isso e hoje, infelizmente, as manchetes mostram que minha decisão foi acertada.

Semana passada, li várias matérias sobre a chegada de haitianos ao Brasil e também o relatório Estado da Migração Ambiental 2010, divulgado em Genebra. Neste último, o texto destaca que os deslocamentos populacionais ligados aos desastres ambientais já superam os provocados por conflitos armados.

No caso do Haiti, naturalmente afetado por furacões e terremotos, se somam outras tragédias, como a redução da cobertura vegetal para 1%, falta de água, epidemias e governos que a gente sabe bem como foram.

As cifras são significativas: em 2008, 4,6 milhões de pessoas tiveram que deslocar-se em função de conflitos armados, contra 20 milhões que o fizeram por problemas ambientais. Em 2010, o número de atingidos por questões climáticas subiu para 38 milhões. O numero de refugiados políticos é de 16 milhões de pessoas.

O documento se concentra no Haiti e Chile (terremotos), Franca (tempestades), Rússia (incêndios florestais), e Paquistão (inundações) e pode ser lido na íntegra AQUI. Menciona ainda três cases do Brasil – migração pela seca no Nordeste, desmatamento na Amazônia e inundações no Rio de Janeiro. Velhos conhecidos.

Escrevo esta coluna porque um país que cresce com pouco cuidado com o meio ambiente, como o Brasil, precisa pensar em como vai pagar esta conta. Ser a sexta economia do mundo tem a ver com isso, embora muita gente não veja a conexão.

A arquitetura jurídica internacional existente ainda não ampara a estes refugiados, que dentro de oito anos serão 320 milhões. “Recusar estas pessoas é a receita para o desastre”, diz o relatório.

Excelente matéria de Eric Nepomuceno, no jornal Página 12, aponta que há dois tipos de recepção para estrangeiros que vêem o Brasil como terra prometida.

Segundo o texto, o governo prepara uma nova política de imigração destinada a profissionais estrangeiros “altamente qualificados”. Isto é, para imigrantes de luxo, especialmente europeus, que poderão entrar em numero de até 400 mil, mais ou menos. Por outro lado, o país permitirá a entrada de 1200 haitianos por ano, por cinco anos.

Nepomuceno lembra que desde 2008, 87 mil espanhóis foram beneficiados pela generosidade brasileira, e ninguém falou de onda de imigração espanhola, como se referem em Brasília aos quatro mil haitianos que fugiram das ruínas em que se transformou seu país desde o terremoto de 2010. “Colas y filas para haitianos, alfombra roja para europeos”.

Na Argentina, a lei de migração (Lei 25.871) é considerada avançada. Sancionada em 2004 e regulamentada no ano passado, reconhece que “o direito a migração é essencial e inalienável da pessoa” e garante ao migrante o acesso a todos os direitos, serviços e bens públicos em igualdade de condições com os cidadãos argentinos, desde que não tenha antecedentes de delinqüência.

Mas o descaso com o meio ambiente é gigantesco.

Um tema a pensar. Para todos os países.

Sugestão de leitura: Colapso, de Jared Diamond

Texto no Noblat, AQUI. Desculpa aí se a Carta de hoje tem pouco de Argentina…

Cartas de Baires: arte e paixão no subsolo

Siqueiros e Blanca

A Plaza de Mayo tem um novo atrativo, o Museu do Bicentenário e, dentro dele, uma jóia que ficou mais de um século abandonada: o mural Exercício Plástico, do mexicano David A. Siqueiros (1896-1974).

A obra tem uma história que mistura arte, amor, traição, dinheiro, poder.

Tudo começou em 1933 quando Siqueiros desembarcou em Buenos Aires acompanhado da mulher, a poeta uruguaia Blanca Luz Brum.

Siqueiros é considerado, junto a Diego Rivera e José Clemente Orozco, um dos pais fundadores da escola muralista mexicana, que proclamou uma arte pública dedicada a temas revolucionários e sociais com o objetivo de inspirar as classes populares.

Aqui, o casal conheceu Natalio Botana, fundador do jornal Crítica e excêntrico milionário argentino. Foi ele quem pediu ao artista que pintasse um mural num porão de sua casa de campo, na periferia de Buenos Aires.

O mexicano aceitou a oferta e convocou três jovens pintores para a empreitada: Antonio Berni, Lino Spilimbergo e Juan Carlos Castagnino – que depois fariam os murais da Galeria Pacifico e dariam início ao movimento muralista argentino. Completava a equipe o cenógrafo uruguaio Enrique Lázaro.

Foto AFP

A obra foi executada em apenas três meses e é a única em que Siqueiros driblou a temática política e social. Pintou sua mulher, Blanca, com uma técnica moderna para sua época.

Os artistas substituíram o pincel pelo aerógrafo, o desenho pela fotografia, o óleo pelas resinas sintéticas o banco acadêmico por um ponto de vista arbitrário que se desloca o tempo todo. A intenção era simular uma caixa de cristal afundada na água e visitada por voluptuosas figuras aquáticas.

Para isso, usaram slides que se projetavam de forma oblíqua contra a parede. Como os muros do subsolo eram curvos, as imagens das mulheres nuas se deformavam e os contornos eram traçados a partir dessas imagens.

Blanca não foi somente musa inspiradora: sua figura dotou o mural de um halo de lenda e misticismo. Enquanto Siqueiros pintava o corpo nu de sua mulher no subsolo, Blanca se convertia em amante de Botana. A obra é, dessa forma, também um retrato do fim de um romance.

Pouco tempo depois, Siqueiros apoiou uma greve de trabalhadores e foi expulso do país. Blanca ficou na Argentina, com Botana.

Com a morte do empresário em 1941, a propriedade foi vendida e a mulher do novo dono tentou destruir o trabalho com ácido, por considerá-lo muito pornográfico. Não deu certo. Ela então tapou o mural com cal.

Em 1989 o lugar foi comprado por Héctor Mendizábal, que decidiu resgatar o mural e o separou em cinco pedaços como se fosse um quebra-cabeças, com a intenção de mostrá-la ao mundo.

A obra de engenharia foi super sofisticada, mas esbarrou com um problema judicial e os pedaços ficaram 17 anos guardados em caixas até que, em 2003, Nestor Kirchner declarou o trabalho de interesse artístico e o Senado aprovou a sua expropriação.

Com uma história assim, o mural já virou filme. Aliás, dois. A ficção El Mural de Siqueiros, de Hector Oliveira (o mesmo de Patagônia Rebelde), e o documentário Los Próximos Pasados, de Lorena Muñoz. 

Texto no Noblat, AQUI.

Textos técnicos sobre o tema:

1. O MURAL DE SIQUEIROS NA ARGENTINA – ARTE E POLÍTICA NA AMERICA LATINA, do historiados Daniel Schávelzon, publicado na revista Contratiempo. Integra AQUI. 

2. Un “Ejercício Plástico” para el arte, de María Laura Guevara (Agencia CTyS).