Tierra de los Padres, filme sobre o Cemitério da Recoleta

Tem mais de um ano que espero a chegada deste filme aos cinemas. Pode ser visto a partir do dia 5 de julho, na sala Leopoldo Lugones.

Depois de sua estréia mundial com sucesso, em Toronto, no ano passado, a película sofreu um certo rechaço em vários festivais e não participou, por exemplo, do Bafici.

O filme conta o enfrentamento de duas versões da história argentina: a dos vencedores e a dos vencidos. Com a particularidade de que o faz por meio de um espaço concreto e simbólico ao mesmo tempo: o Cemitério da Recoleta, no qual repousam juntos os que no passado lutaram em lados opostos.

Esse recorrente enfrentamento (ainda hoje presente) é posto em cena através de citações lidas junto às tumbas, dando lugar a uma espécie de “diálogo de mortos” que vai debulhando a história.

Há uma crítica interessante AQUI e várias fotos sobre o filme AQUI, em Cinema Nacional.

Tierra de los Padres (Fatherland) Oficial Trailer from Trivial Media on Vimeo.

Cartas de Buenos Aires: Panelaços. E Panelaços.

Foto emblemática do panelaço de 2008

Alguns bairros elegantes de Buenos Aires tiveram seu sossego quebrado pelo ruído de panelas e frigideiras batendo a todo vapor, e buzinas tocando sem parar, na última quinta-feira à noite.

Fiquei sabendo da zoada pelo Facebook, já que no meu bairro, que fica no Sul da cidade e é de classe média baixa, reinava a maior paz e silencio.

A confusão foi concentrada em bairros como Recoleta, Belgrano, parte de Caballito e Lãs Cañitas, zonas de maior poder aquisitivo.

Está claro que o detonador do protesto foi a barreira para comprar dólares, a obsessão argentina, especialmente em tempos de inflação, embora a chamada oficial fosse contra “ a insegurança, a violência verbal, o autoritarismo, a inflação e o aumento dos impostos ao campo”.

Mas há panelaços. E panelaços.

Nascidos no Chile de Salvador Allende, os panelaços da direita anunciaram o sangrento golpe militar.

Em 2001, em Buenos Aires, mudaram bruscamente o signo ideológico e serviram para expressar um momento de confluência, de argentinos fartos com o governo do presidente Fernando de La Rua.  “Piquete y cacerola, la lucha es uma sola” era o grito de guerra. A pior crise da história argentina havia logrado o impossível: unir os desempregados de classe baixa, tradicionalmente representados pelo peronismo, com a classe média.

As panelas saíram às ruas novamente em julho de 2008, outra vez nas mãos da classe média, solidária com os donos do “campo” e contra a resolução que impunha retenções moveis às exportações de grãos. A medida foi derrotada no Congresso e a manifestação, desta vez, ficou associada somente a um setor mais privilegiado da sociedade.

Uma das fotos mais famosas da época – e que voltou com força na internet semana passada – é a que mostra uma senhora que saiu às ruas para demonstrar sua inconformidade levando a empregada doméstica, de uniforme, para golpear a panela, enquanto ela agarrava firme a carteira.

Foto que deu o que falar no panelaço de agora

Fotos deste tipo também circularam agora. Manifestantes chiquérrimos com seus cafés Starbucks, ou fumando charutos, por exemplo, protestando por não poder comprar dólares…sem passar pela Receita Federal!

A guerra em Facebook e Twitter foi feroz. Gente a favor e gente contra, os dois lados se dizendo barbaridades, mostrando o que quem está aqui já sabe, o maniqueísmo e o fervor com que se dividem os campos da sociedade quando se trata de governos e oposição.

Por enquanto, os indignados da Argentina querem apenas comprar verdinhas e fazer barulho. O que espero é que o movimento fique nisso e não tenha, nunca, nada que ver com os da Grécia e Espanha, que são por pão, casa e trabalho.

Panelaço das maiorias, isso sim é motivo de preocupação.

Coluna no NOBLAT, aqui.

Nova bibliografia sobre Malvinas

O conflito das Malvinas foi um dos booms editoriais da Feira do Livro de Buenos Aires neste ano em que se lembra o 30º aniversário da guerra entre Argentina e o Reino Unido pela soberania das ilhas.

Deixo abaixo uma lista de títulos (entre livros novos e reedições).

Se o dinheiro der para comprar apenas um, minha aposta fica entre Lágrimas de hielo e o livro Montoneros o la ballena blanca”, do pesquisador Federico Lorenz, que aborda a guerra sob a perspectiva histórica vinculada com terrorismo de Estado numa obra de ficção. Este cara é o cara. Há muitos anos escreve sobre o tema, sendo que esta é sua primeira obra de cunho literário. Fiquei curiosa.

1. Lágrimas de hielo(NOVO), da jornalista Natasha Niebeskikwiat, traz à tona os abusos e tormentos que “não poucos” soldados sofrerem por parte de seus oficiais superiores, assunto que chegou há pouco na Corte Surprema de Justica da Argentina, para que esta determine se estes crimes foram ou não contra a humanidade.

Natasha, primeira jornalista a pisar no arquipélago do Atlantico Sul depois da guerra, afirma que há 70 oficiais e sub-oficiais imputados por abusos e até um morto pela própria tropa.

«Lo más grave —reflexiona— no eran los estacamientos, enterrarles vivos hasta el cuello o las tremendas palizas que recibieron. Lo peor era que no les daban de comer».

Os sete pilotos que participaram da operação

2. “Malvinas, los vuelos secretos“, de  Gonzalo Sánchez  (NOVO),é um livro sobre os pilotos das Aerolíneas Argentinas que voavam para a Líbia, África do Sul e Israel para conseguir armas e traze-las ao país durante a guerra. AQUI, uma entrevista com o autor e MATÉRIA feita com os pilotos e publicada no Clarín.

3. “Rabinos de Malvinas” (NOVO) – Nesta obra, Hernán Dobry traz à tona a história de cinco religiosos que foram enviados às ilhas como apoio espiritual aos soldados judios.  Foi a primeira vez na história do país que sacerdotes de outra fé que não a católica formaram parte das Forcas Armadas. Eles tem um próprio blog sobre o tema.

4. “Guerra de Malvinas: imágenes de una tragedia”, de Román Lejtman, promete abordar “o papel da CIA; os satélites da União Soviética e a influencia de Fidel Castro e Augusto Pinochet no conflito bélico”

5. “Vidas marcadas, nuevas crónicas sobre Malvinas”,  de Agustín Gallardo, busca “recuperar a voz, o depoimento e a vivencias dos protagonistas e atores secundários don conflito”.

6. “Malvinas Operación Chaff – un secreto juego de espejos“, apresenta a visao do Brigadeiro ao Ar Ernesto Víctor Michelli sobre o conflito.

7. “Malvinas, la trama secreta”, um trabalho de pesquisa dos jornalistas Oscar Raúl Cardoso, Ricardo Kirschbaum e Eduardo Van der Kooy, publicado pela primeira vez em 1983, revisado em 1992 e reeditado agora.

8. 1982 (NOVO), do jornalista argentino Juan Bautista Yofre.

9. Vidas marcadas (NOVO), do jornalista Agustín Gallardo, que traz relatos de protagonistas que estiveram diretamente na guerra

10. Malvinas, façanha ou incompetência ou Até o último dia, do tenente-general Martín Balza e do coronel Dardo Forti, respectivamente.

11. “Trasfondo” (NOVO), de Patricia Ratto (ficção)

12. Montoneros o la ballena blanca” (NOVO), do pesquisador Federico Lorenz, aborda a guerra sob a perspectiva histórica vinculada com terrorismo de Estado. Crítica do Pàgina 12 AQUI. 

Cartas de Baires: Matando um leão por dia

Os jornais argentinos publicaram no final de semana as primeiras pesquisas de opinião pública sobre a expropriação, por parte do governo argentino, de 51% das ações da YPF que estavam nas mãos da espanhola Repsol.

Levantamento feito pela Poliarquia Consultores para o jornal opositor La Nación  mostra que 62% dos argentinos apóiam a medida. “Existe um apoio majoritário, mas também a consciência da opinião pública sobre as razões da crise energética e as conseqüências que esta medida pode ter para a imagem do país”, disse Sergio Berensztein, diretor da empresa.

No Página12, mais alinhado ao governo, pesquisa feita pelo Centro Estudos de Opinião Pública (CEOP) mostra que os números chegam a 74% de aprovação. Igualmente, 67,1% dos leitores apontaram conhecer os motivos da expropriação. Citaram a falta de investimentos por parte dos espanhóis e a necessidade de tirar da mão de estrangeiros o controle de recursos naturais estratégicos.

A imagem da presidente Cristina Kirchner também melhorou – passando dos 60% de aprovação – e seus seguidores em twitter bateram a casa de 1 milhão.

A prova de fogo será amanhã, quando o Senado discutirá o projeto de lei que declara de interesse público a exploração de petróleo. O debate deve entrar noite adentro.

O governo espera contar não apenas com a bancada aliada, mas também com boa parte da oposição. Fala-se em 65 votos a favor, de um total de 72 senadores. Na Câmara, a expectativa é chegar a 80% de apoio. Até o ex-presidente Carlos Menem, que privatizou a companhia, mudou de lado.

Um bom artigo sobre o tema foi publicado ontem na Folha de São Paulo pelo economista Luiz Carlos Bresser Pereira, ministro da Fazenda de José Sarney e ministro da Administração e também de Ciência e Tecnologia durante a gestão de Fernando Henrique, para citar uma fonte menos suspeita de “cristinismo”.

Sob o título A Argentina tem razão, questiona se “o desenvolvimento da Argentina depende dos capitais internacionais, ou se são os donos desses capitais que não se conformam quando um país defende seus interesses”.

O ministro das Relações Exteriores da Espanha disse – referindo-se à Argentina – que quando um regime está em dificuldade, sempre busca um inimigo no exterior. Mas esta frase é, em realidade, um auto-retrato de seu próprio país, onde um regime ultraconservador acaba de fazer um brutal ajuste em educação e saúde, a economia está à deriva, o sistema bancário ao borde do colapso e o desemprego altíssimo.

Para completar, tem uma família real atolada em escândalos de corrupção, matança de elefantes, amantes alemãs e tiros no pé. Parece lógico que abrace a bandeira de Repsol como causa nacional, “pateando la pelota afuera”, como dizem aqui na Argentina.

A culpa do próximo colapso da Espanha seria de Cristina, e não das políticas desastrosas do PSOE, antes, do PP agora, somadas às pressões de Merkel, do FMI e dos bancos.

Texto original, no Noblat, AQUI.

Sugiro a leitura do ótimo artigo POR QUE BUENOS AIRES ENLOUQUECE A MìDIA, publicado no The Guardian por Mark Weisbrot. Ele  é co-diretor of the Centro para Pesquisa Econômica e Política (CEPR), em Washington. Também é co-autor de Ao Sul da Fronteira, documentário de Oliver Stone. Em 28 de março, a Folha de S.Paulo, que reproduzia a cada duas semanas alguns de seus textos, interrompeu a publicação, sem oferecer motivos aos leitores.

Para quem não acompanhou a história dos leões, deixo o vídeo abaixo. Impressionante.

Cartas de Baires: O pequeno príncipe e o essencial, já não tão invisível para os olhos

Foto Juan Travnik

O aniversário da Guerra das Malvinas, que completa 30 anos em 2012, é “o” tema do ano na Argentina. Começou com uma piada e com duas boas notícias.

As risadas foram causadas pelo primeiro ministro britânico David Cameron, que chamou a Argentina de “potência colonialista”. Vindo de quem vem, é surreal. Dias depois, no mais moderno navio da Royal Navy, desembarca nas ilhas o príncipe William, herdeiro do trono britânico.

As boas notícias são a atitude negociadora argentina e a busca de aliados internacionais para forçar o diálogo sobre a soberania das Malvinas.E também a autorização, pela presidente Cristina Kirchner, da abertura do Informe Rattenbach, documento que investigou a responsabilidade das autoridades militares na guerra entre Argentina e Grã Bretanha.

O texto leva o sobrenome do general que liderou os trabalhos, a pedido do então presidente de facto Reynaldo Bignone. Começou a ser elaborado em dezembro de 1982 e, por suas conclusões, foi arquivado sob o selo de “Segredo de Estado”, o que o protegeria por 50 anos. A abertura do documento, agora, é histórica.

Fragmentos do informe, que já circulam há tempos pela internet mas não tinham o reconhecimento oficial, deixam claro o que todo mundo já sabe – que o país não estava preparado para uma guerra, que este não era o método para recuperar as ilhas, e que a improvisação foi total.

“Medidas irreflexivas e precipitadas”, “aventura militar”, “falha de coordenação entre comandos”, “falta de informação sobre o inimigo”. E por aí vai.

Os soldados argentinos não tinham nem a instrução básica de tiro e combate, não havia estoque de comida (muitos morreram por desnutrição), mais de 60% das bombas argentinas não explodiam porque não tinham o trem de fogo preparado para alvos navais.

Segundo dados oficiais argentinos, 649 soldados morreram em combate e 1.068 foram feridos. A Inglaterra reconhece 255 falecidos entre suas tropas e cerca de 700 feridos.

Para os interessados no assunto, deixo a dica de dois livros. Fantasmas de Malvinas Cruces: idas y vueltas de Malvinas, de FedericoLorenz, este último escrito em parceria com María Laura Guembe.

Eles compilaram 80 de quase 3 mil fotos inéditas da guerra que encontraram após investigação que contou com o apoio de ex-combatentes, familiares das vítimas e militares argentinos. As imagens são impressionantes.

Para muitos jovens, além de estar em guerra, era a primeira vez que viam o mar, que voavam de avião, que passavam frio. O que puderam, registraram.

Lorenz diz que o melhor lugar para entender o conflito é o Museu Imperial da Guerra, em Londres. Muitas das cartas e fotos enviadas pelos oficiais argentinos, pelo menos as que não foram picoteadas pelos “isleños”, foram roubadas pelos ingleses. Histórica tradição britânica.

Texto no blog do Noblat. 

Algumas fotos estao no vídeo abaixo. Não tem áudio.

Cartas de Baires: O falso positivo e os jornais argentinos

Alguém mais vê maldade nesta vírgula, ou estou meio tendenciosa?

Os argentinos passaram o fim de semana digerindo o resultado de “falso positivo” dos exames da presidente Cristina Kirchner. A notícia de que o diagnóstico inicial tinha sido modificado – ou seja, não era câncer de tireóide – deu margem para especulações de todo o tipo na imprensa. Erro médico? Uso político?

Para acalmar os ânimos, no final da tarde do domingo a equipe médica divulgou uma cópia dos primeiros exames onde os especialistas falavam de “citologia compatível com carcinoma papilar (Bethesda categoria VI)”. Isto é, com um valor do sistema Bethesda que caracteriza o tecido como tumor maligno, que deve ser extirpado mediante cirurgia.

A linguagem médica do documento, no entanto, era cautelosa e qualificava o analisado como “compatível” com um carcinoma, o que deveria ser confirmado com biopsia posterior à cirurgia. Segundo os médicos, isso não se confirmou e a presidente entrou para os 2% de casos denominados “falsos positivos”, que só podem ser verificados após a cirurgia (esta, inevitável, com ou sem câncer).

Como a mídia abordou o tema?

O jornal Clarín, principal opositor ao governo, costuma abrir fogo nos títulos e manchetes (embora os textos não deixem por menos). “A presidente foi operada por um câncer que não teve”, “Governo admite que o diagnóstico estava equivocado”, “Cristina foi operada sem necessidade e lhe tiraram inutilmente as tireóides”. “Quer dizer que Cristina Fernandez não tem câncer e agora também não tem glândula tireóide”, salivou uma jornalista.

O La Nación é mais sóbrio nas manchetes (A presidente não tem câncer, ou Casa Rosada nega erros no tratamento da presidenta). E também nos textos, que são infinitamente mais profissionais que os do Clarín.

Por outro lado, bombardeia nos editoriais e artigos. Carlos Pagni, no texto “Mala Práxis do governo”, coloca pimenta na história. “Todas estas irregularidades nos obrigam a perguntar se o governo trata o corpo da presidente com a mesma negligência com que administra a moeda”, diz. Os comentários são de arrepiar!!

Os jornais mais alinhados abusam do tom na outra ponta, claro. “A melhor notícia”, alardeava o Página 12 de domingo. “Governo assegura que contou tudo sobre a saúde de Cristina”, dizia El Argentino.

Como vocês podem ver, o tema ainda vai render por aqui. E fica a impressão de que qualquer que fosse o resultado dos exames, a briga na mídia ia seguir igual. Pior para o leitor, que fica sem entender nada. Mas com um ex e um atual presidente que já passaram por problemas de saúde, o Brasil sabe bem como é isso.

Texto completo no Noblat, AQUI. 

A privataria tucana e o silêncio revelador

Deixo abaixo o comentário de Bob Fernandes sobre o polêmico livro A PRIVATARIA TUCANA e o PDF para o mesmo, na íntegra, AQUI. 

Cartas de Baires: 10 anos sem panelaços

Madrugada de 19 para 20 de dezembro (Foto Telam)

Precisa legenda?

Um documentário essencial para entender a Argentina é Memória do Saqueio, do diretor Pino Solanas, que compartilho com vocês na íntegra, abaixo. O filme conta a história da última grande estafa ao povo argentino, que neste dezembro completa 10 anos.

As cenas são impressionantes e história esta toda lá, condensada. A formação da divida externa, a era Menem, o discurso neoliberal e privatizador, a dolarização da economia. Depois, o esgotamento do modelo, a quebradeira, o empobrecimento, cavalos atropelando as Madres com seus lenços brancos, uma multidão enfurecida gritando “el pueblo no se va”, saqueios em supermercados.

Olhando para trás, parece que faz muito tempo. Mas não. Apenas uma década separa a Argentina de hoje da Argentina do “que se vayan todos”.

No dia 1 de dezembro de 2001, o então presidente Fernando de la Rua e seu ministro da economia Domingo Cavallo anunciaram um bloqueio bancário, um mega confisco, que entrou para a história com o nome de “corralito”. A medida autorizava o saque de apenas 250 pesos por semana das contas e poupanças.

Milhares de pessoas foram às ruas para protestar, enfurecidas.

No dia 20 de dezembro, De la Rúa teve que escapar da Casa Rosada,em um helicóptero. Dolado de fora, uma multidão enfrentava a polícia. Houve mais de 30 mortos e cerca de 20 mil pessoas morreram por problemas cardíacos.

Em uma semana, cinco presidentes passaram pela Casa Rosada. Cerca de 400 mil pequenas e médias empresas fecharam as portas e 1,6 milhão de pessoas perderam o emprego. O país nunca mais foi a mesmo.

A classe média, que queria recuperar sua poupança, e os desocupados, que queriam trabalho, marchavam juntos pela primeira vez. “Piquete y cacerola, la lucha es una sola”.

Hoje a Argentina vive um dos momentos de maior crescimento econômico da sua história. O país reduziu o índice de pobreza, que chegou a atingir 54% durante a crise, para menos de 20% segundo a consultoria Equis, especializada na análise da pobreza e desemprego, e para menos de 10% segundo o governo. O desemprego, que teve pico de 24%, está em 7%. Há uma serie de outros índices positivos.

A socióloga Norma Giarracca, co-autora do livro Tiempos de Rebelión – Que se vayan todos, destaca que desde 2003 surgiram tanto uma democracia quanto um capitalismo econômico mais amigável no país.

Além disso, a Argentina logrou uma serie de direitos sociais e avançou enormemente na área de direitos humanos. A população foi às urnas e respondeu com 54% dos votos pela continuação deste projeto político. A presidente tem 70% de aprovação popular.

Importante olhar a história em perspectiva neste momento, muito mais do que para a cor do vestido de Cristina na posse.

 

Para ler o texto no Blog do Noblat, é só clicar AQUI.

Cartas de Baires: a justiça que repara e cria novos marcos jurídicos

Segue abaixo a íntegra da coluna Cartas de Buenos Aires, publicada hoje no Blog do Noblat.

Foto Reuters

A chamada “mega causa da Esma”, que culminou na semana passada com a condenação de 18 militares argentinos por crimes contra a humanidade (12 à prisão perpétua), deixa diversas marcas simbólicas e jurídicas.

O julgamento é histórico por vários motivos. Primeiro, pelo seu tamanho. Reuniu o maior número de militares desde que as leis que anistiavam os oficiais da última ditadura argentina foram revogadas, em 2003.

Os acusados foram condenados por crimes praticados contra 86 pessoas na Escola de Mecânica da Armada, mais conhecida como ESMA. Desse total, 28 continuam desaparecidas e cinco foram assassinadas.

Entre as vitimas, Azucena Villaflor, uma das fundadoras da organização Mães da Praça de Maio, duas freiras francesas que apoiavam o grupo, Alice Domon e Leonie Duquet, e o jornalista Rodolfo Walsh.

Na lista de condenados, além de Alfredo Astiz, que ficou conhecido como “anjo loiro” ou “anjo da morte”, de Jorge “El Tigre” Acosta e de Ricardo Miguel Cavallo, há outros 15 repressores que receberam sentença pela primeira vez.

A causa também é histórica porque envolve um dos poucos centros clandestinos com sobreviventes, em torno de 200 dos cinco mil que passaram por lá. Isso significou relatos orais impressionantes.

E mais: relatos novos em relação aos primeiros depoimentos pós-ditadura, e depoimentos inéditos, como de vizinhos.

As vítimas dizem que antes a prioridade era provar a existência dos centros clandestinos e dos desaparecidos, e reconstituir os nomes dos repressores. Agora, liberados desta necessidade, podem falar de outros temas como, por exemplo, a violência sexual contra as mulheres.

Aliás, este é o primeiro julgamento que inclui a violência sexual como crime contra a humanidade – um avanço enorme no marco jurídico nesta área. Antes, o tema era tratado como uma tortura a mais.

O volume de testemunhos permitiu aos advogados marcar os eixos da violência de gênero na ESMA: escravidão sexual, abuso sexual apelando para a fragilidade mental e física das vitimas e violações sistemáticas de mulheres grávidas.

Uma particularidade terrível incluía acordar as seqüestradas durante a noite e fazê-las se arrumarem para ir a restaurantes ou dançar. Uma das vítimas contou que, como uma triste e ilusória forma de resistência, elas escolhiam os pratos mais caros e escreviam com batom nas portas dos banheiros.

Outro diferencial deste julgamento foi que desta vez as testemunhas falaram de frente para os acusados e o público. Elas afirmaram que, embora isso aumente a pressão na hora dos depoimentos, é muito mais reparador. Uma boa notícia.

Esperamos outras mais, amanhã e sempre. Aqui e aí.